A princípio não vi Caleidoscópio. Adentrei o túnel escuro enquanto me transformava, juntando forças para continuar caminhando até me afastar um pouco da grande sala principal. Eu estava ofegante, muito cansado, e minhas pernas bambas não me sustentaram em pé por muito tempo.
Depois de poucos minutos andando, caí de joelhos no chão e desisti de forçar meus próprios limites. Me joguei na terra gelada. Só precisava de algum tempo de descanso e seria capaz de encontrar o alçapão que levava à saída.
— Ei! — Alguém gritou em meus ouvidos pouco tempo depois de eu fechar meus olhos. — Não é hora de tirar um cochilo. Vista-se.
Não me dei o trabalho de abrir os olhos, pois conhecia aquela voz. Era Tony. Era bom que estivesse vivo, ainda que àquela altura eu já houvesse começado a acreditar que Caleidoscópio era meio imortal. Não tinha outra explicação para a sobrevivência de um sujeito tão imprudente.
— Preciso descansar. — Sussurrei, me encolhendo em posição fetal. Em momentos como esse eu normalmente adoto uma postura mais sábia e reprimo as necessidades do meu corpo, mas naquela hora eu estava realmente esgotado. Tinha subido quase dez andares voando, sem contar as inúmeras vezes que precisei me esconder e desviar a rota.
Tony não parecia nada satisfeito com meu comportamento infantil e, sem mais nem menos, enterrou um chute na minha barriga. Eu não tinha como discutir, aquilo era o certo a se fazer, portanto o obedeci e seguimos calados e de cara fechada em direção à saída.
— E que demora foi essa? Se perdeu no caminho? — Comentou enquanto andava de nariz empinado na minha frente. Nem respondi. Não fosse o meu improviso enquanto abelha, era provável que ele tivesse sido capturado.
Enquanto voltava comecei a calcular o tempo que passamos ali embaixo. Pelo menos umas três horas, sem contar o percurso de ida e volta pelo túnel. Comecei a temer a possibilidade de Tam ter nos abandonado, cansado de esperar sozinho no frio. Aí sim, seria a nossa morte. Quando chegamos ao alçapão percebi que o buraco deixado pela falta da tampa que movemos para o lado tinha permitido a entrada de neve, que se acumulara em um montinho logo abaixo da saída. Ainda assim, não era suficientemente alta para que pudéssemos usá-la para subir.
Sem perder tempo, Tony começou a escalar a corda que deixamos pendurada na entrada, enquanto eu gritava na esperança de chamar a atenção de Tam. O vento forte lá em cima nos impediu de ouvir qualquer resposta, mas a corda continuava firme o suficiente para escalarmos para cima.
Tão logo me coloquei de pé no chão, olhei em volta à procura de Tam, nervoso. Para a minha felicidade, lá estava ele: imóvel no exato local onde havíamos o abandonado, um dos pés segurando firmemente a outra ponta da corda. Os ombros largos e a cabeça encapuzada estavam cobertos de neve, fazendo com que parecesse uma árvore enquanto permanecia parado com os braços cruzados, sem nem ao menos tremer de frio.
Ouvi Caleidoscópio fechar o buraco com a tampa de madeira enquanto eu me adiantava até o gigante.
— E então?! — Tam perguntou, esperançoso. — Encontraram uma entrada pra mim?
— Não. — Respondi. — Mas encontramos Levi. Você estava certo. Ele está lá embaixo.
A imagem do gigante acorrentado preencheu minha mente e foi difícil disfarçar o desconforto dessa lembrança em frente ao seu irmão. Mesmo assim, eu precisava fingir para Tam que as coisas não estavam assim tão ruins. Naquele momento, era inútil fazer com que sofresse ainda mais. Por isso, permaneci sério ao encarar o gigante.
— Ele está preso. — Falei. — E eles estão em muitos lá embaixo. Não encontramos uma entrada pra você, mas mesmo que tivéssemos encontrado, nós três não daríamos conta de todos eles. — Suspirei, por fim. — Precisamos de ajuda.
Tudo o que eu queria era sair dali o mais rápido possível. Entretanto, ignorante do cenário terrível logo abaixo de nossos pés, Tam parecia inerte. Ficou parado por minutos, olhando para o horizonte por cima da minha cabeça, talvez pensando no que fazer.
Eu gostaria de lhe dar o tempo que precisasse, mas, passado pânico de quase morrer nas mãos de soldados lá embaixo, o frio já começava a me incomodar: o vento era mais forte do que quando entramos pelo alçapão, e algo me dizia que uma nevasca estava prestes a começar.
— E então? — Tony perguntou, tremendo de frio ao meu lado. — Voltamos para casa? Acho que vai ser bem mais fácil ter alguma ideia para resgatar o Levi depois do jantar e de nos aquecermos um pouco. — Dessa vez eu concordava com ele. Estava faminto, cansado e com frio.
— Não. — Tam respondeu em tom seco. Olhava fixamente para o meio do nada como se a solução para os nossos problemas fosse se levantar de um daqueles montes de neve.
— Não podemos ficar parados aqui para sempre. — Tentei argumentar. — Logo começa uma tempestade. Eu também estou com frio, Tam. Não podemos desistir de salvar o seu irmão, mas não dá pra ficar aqui sem fazer nada também. Talvez, com ajuda de Tomas...
— Não! O pai não pode ficar sabendo! — O gigante de repente voltou a si e virou-se para mim, com uma expressão séria a ponto de dar medo.
Abri a boca para discutir, mas o seu olhar já tinha deixado claro que nada que eu dissesse mudaria aquela decisão. Tam limpou a neve dos ombros e do capuz e começou a caminhar para algum lugar, fazendo com que eu e Tony fôssemos atrás dele por medo de sermos deixados para trás.
— Para onde vamos então? — Gritou Caleidoscópio, visivelmente frustrado. Para falar a verdade, eu também estava ansioso pela sopa que Tomas prometera para o jantar.
— Conseguir ajuda, oras. — Respondeu Tam. — Conheço um homem que pode fazer alguma coisa. Ilha Flora? É. Acho que é lá.
A Ilha Flora ficava longe dali e o que eu menos queria para os próximos dias era viajar em alto-mar. Ao mesmo tempo, aquela talvez fosse a única oportunidade de sairmos de Cranius Cast.
Não que a ideia de passar o resto da vida vivendo com Tomas me desagradasse, mas eu precisava encontrar Robert tanto quanto Tam precisava de ajuda para resgatar Levi. Por isso, decidi acompanhá-lo mesmo quando ele se propôs a nos mostrar o caminho de volta para o seu pai. Tony se sentiu tentado a voltar.
— Você quer ir com ele? — Perguntou sem jeito, quando percebeu que eu não tinha intenção de me separar de Tam.
— Sim. — Falei com sinceridade. — Eu ainda tenho coisas para fazer. Você sabe, fora daqui.
Aquilo deve ter afetado o seu orgulho de "pirata", afinal, até onde eu sabia, Tony Caleidoscópio queria se tornar ainda mais conhecido, juntar uma tripulação de personalidades destemidas e desbravar o mundo de fora. Ao menos, era isso que ele costumava dizer.
— Iremos com você. — Ele informou ao gigante, em tom deliberativo. Fiquei feliz ao ver que sua velha personalidade sobrevivera aos meses de inércia que passamos em meio à neve. Agora, era só esperar que eu ainda soubesse como manobrar um navio.
Dessa forma partimos de Cranius Cast, sem dar nenhum tipo de satisfação ao gigante que cuidou de nós durante todas aquelas semanas. "Ele está acostumado à solidão", eu disse a mim mesmo, enquanto tentava não pensar em Tomas.
Naquele momento ele deveria estar sentado à mesa, nossos pratos de sopa frios e a lenha do forno em suas últimas brasas. Ele poderia consolar a si mesmo ao lembrar da promessa que fiz: de não deixar seus filhos partirem sem se despedir. Mas já estávamos no navio de Tam, velejando para longe daquela terra de gelo.
Não importava o quanto o gigante confiasse em mim, a única resposta que conseguiria nos próximos meses seria a do tão odiado papagaio de estimação.
Tam era cruel ao esconder a verdade de seu pai, mas eu compreendia e apoiava a sua decisão. Ainda assim, a falta de despedidas me fazia sentir vazio enquanto guiava o barco em direção ao alto-mar.
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Prisma
FantasySobrevivente de um naufrágio, o navegador Romeo, introvertido e covarde, se vê perdido em uma ilha desconhecida. Sozinho, ele precisará encontrar os próprios meios de localizar seu irmão mais velho, de quem foi separado durante a tragédia. Entreta...