35- CALMARIA (Parte II)

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Fui direto para trás do balcão, em busca da chave que abria a pequena porta ao lado do armário de bebidas. Aquela era, provavelmente, a passagem para os aposentos de Dona Maria. Se os brincos estivessem em algum lugar na Taverna Roxa, com certeza estariam atrás daquela porta.

Eu tateei tudo sem sucesso. Em último caso, podia tentar arrombar o delicado trinco de metal.

— Ramon. — Alguém falou pelas minhas costas.

Levantei os braços em sinal de rendição e virei em direção à voz, preparado para encontrar algum soldado que percebeu a invasão. Dei de cara com ninguém menos do que Cont. Com os olhos entreabertos e parte das tiras de cabelo emaranhado caindo sobre o rosto, ele tropegava em minha direção. Estava inegavelmente bêbado.

— É. É você mesmo. — Ele concluiu.

— O que você está fazendo aqui? — Perguntei, na defensiva.

— O que você está fazendo aqui?! — Cont rebateu, formando palavras arrastadas que tinham dificuldade em acompanhar o ritmo de seus pensamentos.  — Eu sou só um bêbado atrás de álcool barato. Parece que ninguém se dispôs a dar um fim no estoque de drink especial da velha. — Me empurrou para o lado enquanto se dirigia a um pequeno barril sobre a bancada. Aquele era o lugar no qual Dona Maria colocava a sua mistura nojenta depois de aferventada. — Você sabe como é feito isso aqui? — Cont abriu a pequena torneira na base do barril e encheu uma taça suja com a bebida escura.

— Já bebi demais para desejar saber.

— Há! — Apesar de verbalizar o riso, seu rosto exalava a tristeza habitual. — Vou te contar mesmo assim. No fim da noite, dizem que a velha passa de mesa em mesa recolhendo os restos que os clientes deixam no copo. Mistura tudo no caldeirão e aferventa, só para que as bebidas com densidades diferentes se transformem nesse muco. — Tomou todo o conteúdo da taça em um gole. — Terrível.

— Eu suspeitava. Minha primeira dose veio com um caroço de azeitona.

— Uma sorte. A minha veio com um dente.

Não pude deixar de rir diante do seu comentário. Aquilo parece tê-lo deixado satisfeito. Cont sentou sobre o balcão e me ofereceu um pouco da bebida especial. Recusei. Eu não podia desperdiçar nosso encontro deixando que aquela substância me embebedasse mais uma vez.

— Que bom que te encontrei. — Falei, por fim. — Preciso das coordenadas do acampamento dos Mentirosos, de novo.

— Não me venha com assunto inútil. Me diga. Como ele está?

— Zenit? Não faço ideia. Estou a sua procura.

— Anda trabalhando pra quem então? O seu tipo não vai atrás de problemas por livre e espontânea vontade.

— Tony Caleidoscópio. — Por algum motivo, eu não conseguia mentir para Cont.

— Então não tenho nada para te dizer.

— Deixando sua inimizade com Tony de lado, preciso que você saiba: nós conseguimos o apoio de Hugo, o Rei dos Gigantes. — Aquilo soava terrivelmente fantasioso saindo de minha boca. Mesmo assim, prossegui. — Viajamos até o Arquipélago da Prata. Conseguimos convencer o Rei a destruir a prisão de Cast! — Ele ficou surpreso com a notícia. Pude ver, assim que a lucidez tomou conta de seu olhar, que avaliava a veracidade de minhas palavras. — Eu não estou mentindo!

— Não há motivo para mentir.

— Exato! E eu, mais do que qualquer um, quero aquele lugar em chamas!

— Mesmo assim, Netuno mentiu para mim, não é mesmo?

— O que?

— Quando um dos tigres devorou meu filho. — Continuou, em voz baixa, ignorando minha presença. — Ele sentou ao meu lado e chorou. Desgraçado. Disse que perdeu o pequeno Anthony em um naufrágio. Disse que conhecia a minha dor. Será que estava se divertindo com a minha tragédia? Ou pior: ele tinha pena de mim. Netuno mentiu por pena de mim...

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