2- UMA VIDA POR UMA VIDA

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Navegamos por águas tranquilas até perto do anoitecer. Patrick me convidou para remover as cracas da amurada e gastamos horas raspando os facões enferrujados que usávamos como ferramenta nas duras protuberâncias, cuidando para não danificar a madeira. 

A tripulação daquele navio não era pequena, mas apenas uma parte estava no convés. Não tinham muito o que fazer: com apenas três velas presas ao mastro principal, aquele era um navio de fácil manobra. Eu conseguiria dar conta das cordas e do timão sem grande dificuldade, de modo que a velha robusta encarregada da direção precisou apenas da ajuda de dois jovens assistentes, uma moça e um garoto sonolento, que demorava para reagir aos gritos de ordem por parte da navegadora. O restante do bando parecia estar ali somente para a segurança. Conversavam em roda enquanto afiavam alfanjes, de maneira alegre e despretensiosa.

Robert entrou em sua cabine e não saiu em momento algum. O vento estava bom, o mar calmo, e aquele era um belo navio, muito bem cuidado, ainda que os elementos decorativos fossem pobres. Me sentia bem, porque gosto de ver as coisas indo bem, também porque dentro de poucas horas eu pretendia tentar convencer a navegadora a me passar a roda do leme. Era arriscado desviar a rota sem a permissão do capitão. Poderiam tentar algo contra mim. Poderiam tentar me matar. Não tinha tanto medo de morrer, mas a ideia de ser jogado na água do mar me assustava bastante. Ainda assim, precisava arriscar. Era a única forma de procurar por Thomas sem revelar o nosso segredo. Se o encontrasse, a amizade entre ele e Robert poderia limpar a minha barra. Caso não o encontrasse, bem... eu não me importava realmente com o que viria a seguir.

— Um navio se aproxima! — A cantoria murmurante de Patrick foi interrompida por um grito. Olhamos todos para o homem que gritara, e em seguida para a direção na qual apontava. Uma escuna navegava diretamente contra nós, em uma velocidade alta o suficiente para que a navegadora desajeitada de Robert não conseguisse evitá-lo.

Vi a porta da cabine se abrir bruscamente, Robert se adiantando para o convés, irritado. Gritou ordens para os seus homens, mas não pareceu se preparar para o combate. Apenas ficou no meio da correria, parado, olhando fixamente para o inimigo que se aproximava. Para minha infelicidade, em pouco tempo fui capaz de discernir a silhueta dos tripulantes do outro navio.

"Não é real", eu gritava por dentro, tentando acalmar o estômago e manter as pernas firmes enquanto digeria o que meus olhos enxergavam. Aquele era um navio de tritões. Patrick correu de onde estava, auxiliando prontamente os homens de Robert. Eu me sentia incapaz. Me sentia mais uma vez torturado pelo destino. Mas nada do que eu sentia realmente importava: o pesadelo era inevitável, cada vez mais próximo.

Fechei os olhos, trêmulo, no aguardo do choque entre as embarcações. Antes disso, no entanto, ouvi a voz áspera de uma aberração.

— Olá Robert.

— Boa tarde. — Robert projetava sua voz atrás de mim em tom que os tripulantes de ambos os navios seriam capazes de ouvir. — Ótimo dia para navegar.

— Não me venha com conversa inútil. — Aquela voz me deu arrepios. — Viemos destruir isso aqui. — Então ouvi o som forte dos cascos se batendo.

— Não há motivo para isso. — Meu capitão respondeu calmamente.

— Você matou um dos nossos! Acha que vai ficar por isso mesmo?!

Abri os olhos devagar, a princípio olhando apenas para os pés de nossos inimigos. Entre pares de pernas escamadas e escuras vi o que me pareceu um par de pernas humanas. Ao tomar coragem para observá-los por completo, minhas suspeitas se confirmaram: em meio aos monstros havia um humano, o qual eu não era capaz de enxergar o rosto, pois estava virado de costas, a cabeça coberta por um chapéu escuro.

— Pegue um dos meus, então. — Robert riu sarcasticamente. — Uma vida por uma vida.

"Ele não pode estar falando sério", pensei. Robert desprezava tanto assim sua tripulação? Até então havia acreditado que era um homem de caráter bom, mas agora estava em dúvida. Seria um blefe?

Vi o humano sussurrando no ouvido do capitão deles, um tritão enorme, gordo, de ombros largos. Seu rosto era coberto por escamas escuras e do pescoço brotavam apêndices nojentos, úmidos por uma substância transparente e mucosa que imaginei ser suor, saliva ou qualquer outro fluido asqueroso que eles produzem. Os olhos espaçados, bem como os apêndices que se moviam desgovernados, formando uma juba negra ao redor da carranca assustadora, faziam com que parecesse terrivelmente animalesco. Depois de ouvir o que o homem tinha a falar, ele olhou diretamente para mim.

— Está bem então. Quero aquele ali. — Gritou com sua voz assustadora enquanto apontava o queixo em minha direção.

Estremeci ao sentir o olhar de todos os presentes sobre mim. Não, não, não podia ser real. Poderiam ficar olhando por uma eternidade, eu não moveria um músculo, não era capaz, mesmo que quisesse. Teriam que me matar ali mesmo, porque não pisaria no outro navio por vontade própria.

Fiquei paralisado, incapaz de reagir, até sentir alguém me levantando pelos ombros. Robert se aproximou por trás e não teve dificuldade em me tirar do chão, era muito mais alto e musculoso.

— Não! — Tentei gritar, mas o som saiu fraco e agudo. Olhei para Patrick, que havia parado ao meu lado assim que Robert e o tritão começaram a discutir. Estendi as mãos em sua direção pedindo ajuda. Não nos conhecíamos muito bem, mas eu havia gostado de sua personalidade. Ele recolheu as dele atrás do corpo e desviou o olhar, encolhendo os ombros, tenso.

— Por favor! — Murmurei para Robert, que agora me carregava em seus ombros.

Ele não respondeu, mas senti seu corpo convulsionar em uma gargalhada silenciosa. Subiu os degraus que se elevavam até a altura da amurada, colocou um dos pés no navio deles e me jogou descuidadamente no convés. Tentei levantar o mais rápido que pude, tonto com os gritos ao meu redor. O cheiro de mar naquele navio era nauseante.

Me coloquei de pé e virei, tentando pegar impulso para correr e pular de volta. Fui segurado por mãos escamadas. Perdi o controle do meu corpo no momento em que tocaram em mim. Me debati, chutei, tentei mordê-lo e me desvencilhar de seus braços fortes. Foi inútil. O tritão me levou até o grande e asqueroso capitão.

Em minha cabeça estava gritando ameaças para todos eles, o medo transformado em ódio. Na realidade apenas me engasgava com a própria respiração ofegante. Sem cerimônias, o capitão levantou um dos punhos pesados e me deu um murro na cabeça.

Perdi a consciência antes de cair no chão.

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