21- ZENIT (Parte I)

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Abandonar Tony me trouxe imensa tranquilidade. É verdade que minhas palavras de despedida foram recheadas de culpa, e mesmo enquanto ajustava as velas, pouco tempo depois de partir de Ilusão de Gelo, seu olhar desamparado assombrava meus pensamentos.

Mesmo assim, a certeza de ter tomado a decisão correta me deixou leve aponto de quase sair flutuando ao lado de Zenit, que brincava com a âncora desconfortavelmente acima da minha cabeça no dia seguinte. Era melhor que Caleidoscópio ficasse ao lado de alguém realmente capaz de protegê-lo. Com isso em mente, suspirei e parei de pensar sobre o assunto.

— Está ouvindo, querido? — Zenit se dirigiu a Napoleão quando cansou de tentar me assustar com malabarismos de objetos pesados. — É o som do silêncio. Não é maravilhoso escutá-lo de novo? — O porco não respondeu até que o jovem sacou uma garrafa de bebida e começou a preparar uma sopa de entranhas, fazendo o pequeno Napoleão saltar e guinchar freneticamente.

Com o navio longe de qualquer corrente que pudesse nos levar de volta para o gelo, eu só precisava de mais uma coisa para de fato começar a navegar.

— Qual o destino, Capitão?

— Além Mar! — A resposta foi empolgada.

— Sem chance. Eu já te disse que...

— Você ainda tem assuntos para resolver aqui. — Ele completou entediado. — Por que não? Vamos lá. O que você quer? Matar alguém? Pedir alguém em casamento? Desde que eu não tenha que colocar os pés em Cranius Gris de novo, estou à disposição.

Dei de ombros. O que eu poderia dizer? Era tentador usar Zenit para ir atrás de Robert, mas eu não podia simplesmente desistir de tudo o que tinha construído durante a vida e contar ao meu capitão sobre os mistérios de Vitória. Em vez disso, seria mais sensato inventar alguma coisa.

— Meu irmão. — Comentei. — Eu preciso encontrá-lo. Nos separamos em um naufrágio e suspeito que tenha sido sequestrado por Robert, o ruivo. Conhece?

— Já ouvi falar. Então você precisa da cabeça de Robert ainda no corpo?

— Eu só preciso de alguma pista...

— Legal. Isso vai ser divertido. Como nos livros de investigação. Vamos para Maia, o melhor lugar para buscar informação. Também pretendo visitar um velho amigo. Tenho um plano que nos deixará ricos o suficiente para comprar Levi. É sempre bom ter um gigante em meio à tripulação, e, se o resgatarmos, ele terá motivos o suficiente para ser fiel a mim. — Não pude deixar de rir diante de seu otimismo. Sem pedir por mais detalhes, Zenit era o aliado perfeito. Se aproximou e abaixou o tom de voz, como se houvesse mais alguém a bordo. — Você sabe, a traição é sempre a ruína dos grandes piratas das histórias. Tenho orgulho de ter uma tripulação confiável, mesmo que pequena. — Completou, pousando a mão em um de meus ombros, a qual tolerei com grande esforço.

Passou as próximas horas lendo as obras recém-adquiridas, abrindo uma exceção à regra de não manusear livros em alto-mar. Antes do cair da noite já tinha devorado metade e fez uma pausa para cozinhar nosso jantar.

— Precisamos pescar. — Comentou ao servir um mingau que, apesar de sem graça, aqueceu minhas mãos quase congeladas no timão.

Quatro dias depois chegamos em nosso destino final. A viagem foi silenciosa a ponto de deixar Napoleão levemente deprimido. Ou talvez fosse a falta de seu amado Caleidoscópio. Comemos muito peixe. Tentei aprender a pescar com vara e desisti depois de falhar muito. Zenit terminou de costurar mangas na minha capa de macaco, que a essa altura já tinha perdido quase todo o cheiro desagradável do animal.

Estávamos nas águas de Centro Arasmo e não fazia mais frio. Mesmo assim, joguei o novo casaco sobre os ombros, atendendo às expectativas do jovem sorridente. Ilha Maia era exatamente como representado no mapa: pequena, redonda, posicionada no centro do mundo. Não tinha árvores, a coroa externa preenchida por uma bela praia de areia fina e clara que cercava a terra avermelhada sobre um pequeno morro no centro.

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