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Aquele noite chuvosa parecia um dilúvio: ruas alagadas e lixos a boiar nas águas sujas dos bueiros.

O enorme carrinho de reciclagem, coberto com lona, estava estacionado em meio à praça. Dentro do carrinho, encolhido igual sardinha em lata, em meio as garrafas pets e papelões, João Paulo se sentia um lixo num cesto de lixo.

Os pais, certamente, deveriam ter encontrado algum lugar melhor para fugir da chuva.

Dentro do carrinho de reciclagem, João Paulo morria de fome e frio, porém a obstinação em usar drogas, o fez ter enorme desejo de ir à procura dos familiares que, de certo forma, estariam "usando" sem ele.

Mesmo chovendo fortemente, cogitou em desafiar o temporal. Desistiu por já ser madrugada. Com violência íntima, aceitou a situação, tentou se confortar em meio ao lixos e garrafas plásticas amontoadas naquele exíguo recinto.

Pegou alguns papelões e fez sua cama. A luta disputada com o lixão daquele pequeno local, o fazia escorregadio por não conseguir mover o corpo livremente e estar preso na mesma posição, quase fetal.

Aquela situação não era vida para nenhum ser humano. Enquanto muitos estavam em suas casas, em suas camas, agasalhados embaixo de seus cobertores e de barriga cheia, ele estava alí faminto, em meio à praça, estacionado com o único bem material da família: "o carrinho de reciclagem."

O carrinho de reciclagem que agora era sua casa, seu abrigo, sua cama. Nem sempre foi assim. Quando era criança, recorda, brincava no quintal de casa. Era feliz, ainda que com as diversas brigas violentas dos pais bêbados e drogados quase todos os dias.

Pelo menos, na época, havia um lar e uma rede na sala para dormir. Agora, exatamente naquele momento, a casinha da infância era apenas triste e remota no lembrança distante que sempre surgia com a chuva e na busca da procura de um teto para abrigar-se, por vezes sozinho, por vezes com os pais.

Uma lágrima, então, escorreu no seu rosto queimado pelo sol e cuja pele estava revestida de uma crosta de sujeira, por vários dias sem banho.

O temporal corria noite à dentro. A chuva nunca cessava. Pensava que, acaso por sortilégio, se a chuva fosse suas lágrimas alagaria toda terra e morreria, assim, toda a vida terrestre.

Quando a água começou a invadir o carrinho de reciclagem, apenas ignorou o fato, embora fosse algo terrível. Fingiu que aquilo não o atingia, mais o atingia sim e toda dignidade dentro de si o arrematava em eterna desilusão por aquela situação que o fez odiar a beleza da chuva, não por ela própria, mas pelo fato que ao chover travava uma luta na qual ele sempre perdia.

A certeza absoluta, para ele naquele momento, era de que ele era ninguém e estava perdido ao "Deus-Dará" junto com sua "sagrada família."

Exausto e à espera do pai e da mãe, por fim, João Paulo adormeceu e, nem mesmo, quando a lona foi arrastada parcialmente pelos ventos e a água invadiu molhando-o todo, não acordou, pois dormia como quem nunca quisesse acordar, dormia por não conseguir morrer.

E assim se fez uma noite de tempestade na vida de João Paulo, um menino que, apesar da dura realidade, ainda sonhava em virar um Dom Quixote e, ao lado de seu fiel escudeiro Sancho Pança, desafiar dragões pelas praças de Mecha. Um dia, João Paulo, tinha certeza, encontraria sua bela Dulcineia.

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