A mãe acorda o menino que se espreguiça e responde que já desce pra tomar café pra ir para escola.
João Paulo, então, levanta da cama, olha assustado ao redor, estava em um quarto limpo, com tudo que tinha direito, um notebook e uma prateleira de livros. Exato, um quarto só dele, e a poucos passos estava seu banheiro, sim, um banheiro, somente dele.
Entrou no banheiro exclusivo dele, tudo ali o pertencia. Tomou banho, em seu chuveiro. Havia sabonete, shampoo, sim, usou todos os produtos de higiene, porque ele era um garoto limpo. Logo após pegou a toalha na qual havia bordado, em verde, “João Paulo”. Pegou o creme dental e sua escova, escovou os dentes porque tudo ali era dele. Depois abriu o guardar roupa: havia uma variedade de roupas e de cores e todas limpas. “Eu sou um garoto limpo”, assim pensou!
Vestiu a farda da escola, a calça jeans e seu estiloso all star. Tudo era dele, disso não havia dúvida.
Pronto, descia as escadas e sentia o cheiro de café fresco, ouvia o latido do cachorro, aquilo trazia paz na casa.
Sentou à mesa, o pai lia o jornal enquanto tomava café, a mãe lhe beijava e dava um belo bom dia. O pai fazia o mesmo, mas sem tirar os olhos do jornal.
Na mesa havia bolo, pães e ovos fritos. Mamãe nos servia com tamanho amor que tudo parecia um “comercial de margarina”.
-Vamos, meu amor, estás atrasado e ainda levarás JP para escola.
- Sei, meu amor, já estou pronto. Filho, vamos?
- Vamos, papai!
Enquanto Jerônimo tirava o carro da garagem, Nazaré trazia o lanche para João Paulo.
- Até às cinco, mamãe!!!
- Até às cinco, meu filho.
O pai do garoto buzinou.
- Beijos, meus amores, até mais tarde.
Dizia Nazaré enquanto acenava com a mão na porta de casa ao passo que o carro do marido se distanciava.- João, João Paulo, meu filho, acorde!
Gritava Nazaré, acordando "gentilmente" o filho.- Mãe, espera eu já desço as escadas para tomar café e ir pra escola. Respondeu João Paulo sonolento.
-Meu filhote, tu tava era sonhando, dizia fatalista Nazaré.
Quando voltou à realidade e notou que era apenas um sonho, produto dos filmes americanizados que via na infância e dos comerciais de margarina em tempos remotos.
João Paulo desejou profundamente morrer naquele sonho do que acordar para aquela realidade atroz.
Porém algo estava diferente no cenário, até pensou que estava ainda a sonhar. Não era sonho, era realidade. Enquanto ele e Jerônimo dormiam, Nazaré e Tiffany deram uma geral na casa. Limparam toda a sujeira, da sala ao banheiro. Limparam igualmente o quintal. Parecia outra casa: tudo limpo e organizado. A casa outra vez voltou a ter vida, brilho, era um sonho real.
Acontece que enquanto Tiffany e Nazaré limpavam a casa era como se ambas limpassem também as almas. Sim, não era apenas uma limpeza normal, era a personificação de um batismo. Deus estava naquele recinto com elas em cada cômodo e as duas entoavam louvores.
Aquela limpeza, inicialmente, tomou Nazaré de relance e a jogou para anos atrás quando antes tudo antes era daquele jeito. Existia uma casa, existia um teto, uma família, diferente de agora.
Era isso, era muito além de limpar o lar que não era seu, era como remover toda a sujeira, de limpar o banheiro, a sala, a cozinha, o quarto, de esfregar o chão sujo, aquele chão onde havia toda a sujeira de um ser humano. Era isso, o chão era a representação do estado espiritual de Tiffany.
Silenciosamente toda sujeira foi removida. As bitucas de cigarros, os preservativos usados. Estranhamente Nazaré não sentia nojo daquilo. Nazaré, novamente depois de tanto tempo, se sentiu em casa e Tiffany depois de tanto tempo se sentiu filha. Pois,por um momento, elas ali viviam numa estranha alegria.
Quando João Paulo e Jerônimo acordaram, não viram a mesma casa de outrora. Ora, era pois a ressuscitação de Nazaré e Tiffany.
A ideia de arrumação da casa veio como espécie de salvação. Primeiro Nazaré veio com tal sugestão e Tiffany abraçou a ideia. Abraçou como quem abraça alguém que naquele instante vinha de tão longe.
A casa agora não era albergue, mas o retrato do futuro que embora distante. Todos estavam a precisar dessa perspectiva de futuro, porque a morte pairava sobre cada um a cada novo dia. Porém, naquele momento, ao concluir toda arrumação e limpeza, Nazaré lançou um olhar para Tiffany e os olhos falaram o tamanho da gratidão do momento.
E o pensamento por trás do pensamento, a ação por trás da ação, o abraço por trás do abraço, ressurgiu num sentimento de vitória porque aquela limpeza era isso e ao concluí-la ambas eram vitoriosas.
Nazaré estendeu os braços cansados e velhos e abraçou a menina e ela chorou não de tristeza, mas quando fechou os olhos e sentiu o abraço daquela velha mulher sofrida e desgastada pelo tempo, pela miséria, pela escravidão da droga. Aquele abraço era como o abraço de mãe nunca dado antes de sua mãe falecer.
Estavam felizes em comunhão, juntas, aquela velha nova alegria. Como se Deus voltasse seus olhos para todos daquela casa. Um olhar sem promessas, sem palavras.
Todos ali decidiram que nunca mas usariam droga, era uma promessa feito em silêncio diante de Deus.

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A Sagrada Família
AdventureDissecando a fome e o que existe de mais repugnante, a doença dos vícios, a escravidão e a profunda miséria humana. Este é A Sagrada Familia: Pai, mãe e filho dependentes químicos, moradores de rua que vagam como andarilhos por todo lugar carregando...