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Gustavo jazia no chão, quase sem vida, com uma palidez translúcida. O sangue banhava o corpo do jovem franzino.

Ele via ao longe Jerônimo correr. A mulher que a perfurou-lhe a barriga já havia ido também, restava apenas ele mesmo e a morte.

Havia tantas coisas a ser feita, assim pensava ele, enquanto o tempo corria com a vida, vida que ele mesmo destruíra por ações impensadas, pelo simples uso de drogas. E a vida ia-se embora como uma tragada de cigarro, uma dose cachaça. Pela primeira, vez em anos, pensou em todos os atos e nos conselhos da mãe. Tudo que ele mais queria não era apenas uma segunda chance, era, meditava consigo mesmo, era simplesmente um abraço.

Estava tão sozinho a sangrar numa parada de ônibus qualquer. O sangue que nutria a vida se escorria pelo esgoto. Uma estranha saudade arrematou o Gustavo ao estado de nirvana, no qual o amor vencia a morte, vencia a dor. Tudo ia, se apagava ante seus olhos fixos no nada, enquanto a mente ia ao encontro da mãe.

Prece. Sim, era isso: Gustavo ensaiava sua primeira e, talvez,sua última prece:

"Perdoa-me, bom Deus, eu que tanto menti e roubei, eu que tanto causei dor... Eu..."

Silêncio.

Luzes celestiais surgiam das trevas. Não era devaneio. Um homem fardado saiu da viatura policial, pegou o corpo quase imóvel e o jogou como animal no interior do veículo, que agora se dirigia à emergência.

Chovia quando Alexandra, mãe de Gustavo, chegou ao pronto socorro naquela tarde. Uma paz por rever o filho lhe roubou lágrimas de alívio e saudades.

O médico lhe informou que o estado de saúde do garoto era estável. Seriam necessários apenas alguns dias de repouso. Por milagre, a perfuração não atingiu nenhum órgão vital. Sua vida, enfim, estava a salvo.

Alexandra ouvia as palavras do médico em silêncio e chorova. Quando, finalmente, viu o filho, que no momento dormia, recordou-se dele menino correndo pela casa. Arrematada, a mulher observava, com amor, seu filho que dormia tranquilo como se estivesse, outra vez, seguro em seu ventre.

Não quis interromper o sono pós- cirúrgico do rapaz, apenas questionava para si mesma: como seria a vida a partir de então?

Como seriam os dias seguintes? O que viria depois? De que lhe serviu ouvir e atender tantos pacientes se não via o próprio filho cair em num abismo, o qual sequer cogitou existir. E todo conforto pra que serviu se perante o papel de mãe e mulher fora falha? Refletiu incontáveis vezes.

Soube, pelo médico, que Gustavo ainda ficaria dois dias internado, em observação. A mãe diante de um vácuo que se instalara em seu interior procurava um meio pelo qual resgataria o filho outra vez para a vida.

Levantou-se, foi até à janela do quarto, cuja cortina estava berta. Olhou para fora e viu um jardim imenso onde brincavam ela, o filho e o marido. Lágrimas lhe corriam pelas faces e assustou-se ao sentir a mão do marido em seu ombro.

O marido, envelhecido pelo sofrimento, olhou o rosto da esposa e disse:

- Vamos tratar de nosso filho?

Gustavo, fraco pelo ferimento, abriu os olhos e não pode acreditar no que via: seu pai e sua mãe juntos. Estou no céu, cogitou consigo mesmo, mas o casal se aproximou do filho e o pai acariciou a fronte do rapaz e calmamente propôs:

- Pronto para voltar à vida?

Gustavo apenas confirmou com um gesto sua concordância e voltou a dormir um sono calmo e sonhou que ele e João Paulo jogavam bola num campo society imenso e sua torcida eram seus, Nazaré e Jerônimo e Tiffany que gritava enlouquecida a cada gol que marcavam.

Dois dias depois, Gustavo, acompanhado dos pais, voltou a experimentar outra vez a vida, uma vida com cores que ele não conhecia mas que, certamente, era um segundo presente de Deus.

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