O sol do meio-dia batia na cara de João Paulo com tamanha violência que parecia encendiá-lo. Bocejou alto e escutou o ronco gutural da barriga faminta.
A praça vazia, os pais ainda não tinham aparecido. Aquela demora, o preocupava, ainda que fosse, por vezes, algo comum de acontecer.
Nesses últimos tempos, as ruas têm sido mais violentas, principalmente para quem nelas vive. A vontade de comer e usar drogas tinha empatado dentro de sua mente. Jogou, então, os olhos ao chão e rezou para achar alguma bituca de cigarro para fumar. Busca vã, nada achou.
Um rapaz, que caminhava às pressas como se estivesse atrasado para o trabalho, passou fumando. João Paulo, educadamente, lhe desejou uma boa tarde e, igualmente, lhe pediu um cigarro. Apesar de toda a sua educação e gentileza não foram o bastante para comover o rapaz que o olhou com nojo e desprezo e sussurrou entre os dentes:
- Toma, macho!!!
O transeunte lhe deu o cigarro e João Paulo mais uma vez usou de sua polidez:
- Muito obrigado, amigo! Pode me arranjar seu fogo para eu acender o meu cigarro?
Na humildade de seu pedido, João Paulo moveu as mãos encardidas às do homem em direção ao cigarro aceso. O homem recuou e com uma expressão de extremo repúdio, tirou o isqueiro do bolso e o entregou com a ponta dos dedos.
- Obrigado, amigo, disse João Paulo.
O homem saiu ainda mais apressado. Sua expressão parecia aliviado de se ver livrar daquela figura suja e esfarrapada. João Paulo tirou um trago do recém aceso cigarro e o mundo rodou, pois estava de estômago vazio.
Ao retornar ao carrinho de reciclagem, viu, ao longe, os pais que chegavam. Com passos largos e alterados, era notável que passaram a noite drogando-se sem ele, o próprio filho. Aquilo o irritou e, com senso de revolta, decidiu fazer uma confusão por tamanha falta de consideração.
- Como vocês me deixam aqui sozinho a noite inteira?
- Meu filho, tome aqui.
O pai de João Paulo, Jerônimo, estendeu a droga ao filho, que logo mudou a expressão facial. Como se valesse toda a espera e apagasse toda raiva. Preparou a lata e fumou a droga em praça pública com tamanha naturalidade que até esqueceu a noite anterior. A fome, então, foi-se embora.
- Vamos sair daqui, tem gente olhando, disse Nazaré, mãe de João Paulo.
- Bora mulher, confirmou o marido.
Saíram dali, arrastando o carrinho de reciclagem.
O sol fervia. A família, então, procurava sombra, pois não tinham chinelos nos pés.
Acharam uma sombra debaixo de uma árvore retorcida, que estava localizada no centro junto de outra praça mais movimentada, com gente e com muitas casas comerciais.
- 'Muié', é o jeito nós pedir esmola por aqui, argumentou Jerônimo.
- Bora, que a fome apertou. João Paulo, fique aí que daqui pra pouco "nos chega", tentou acalmar Nazaré, a mãe.
Outra vez foi jogado para trás e, ao longe, via os pais de porta em porta pedindo comida.
Meia hora depois, Jerônimo e Nazaré voltaram com as mãos vazias após ter "tirado reizado, de casa em casa".
As pessoas que passavam por ali, ao notarem a família, apressavam-se, esticavam os passos por medo ou por não quererem proximidade para uma possível ajuda com moedas.
- É o jeito pedir esmola no sinal. No caminho, nós 'procura' alguma coisa nos 'saco de lixo desse povo miserávi' pra tentar vender, comentou Jerônimo.

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A Sagrada Família
AdventureDissecando a fome e o que existe de mais repugnante, a doença dos vícios, a escravidão e a profunda miséria humana. Este é A Sagrada Familia: Pai, mãe e filho dependentes químicos, moradores de rua que vagam como andarilhos por todo lugar carregando...