A SAGRADA FAMÍLIA - CAPÍTULO 13
A Sagrada Família: Capítulo 13
Ao longe, Nazaré andava de um lado para o outro. Caminhava em círculos com o cigarro entre os dedos a espera do marido. No seu íntimo de mulher, previa que algo errado estava a acontecer e, em breve, logo saberia.
A poucos metros Dalí, Jerônimo puxava a perna deficiente com dor e dificuldade. Exausto, o corpo banhado de suor e de medo. Se, por caso, fosse preso o que seria de sua família?
Seria o fim! Ele já estava arrependido de tudo. A praça parecia um lugar inacessível, porém quando chegou mais perto e observou a mulher ao longe, respirou e reduziu a marcha.
- Vamos embora, mulher!
- Que diabo é isso, 'home'?
Jerônimo mostrou o fruto do roubo e a mulher lhe deu uma bofetada na cara.
- Virou ladrão agora, criatura?
O tapa trouxe o homem outra vez a realidade, mas a necessidade da fuga era primordial.
- Vamu sair fora logo, mulher!
Então acordou o filho que dormia dentro do carrinho de reciclagem. Desnorteado, acordou e, apenas, ouvia o pai lhe orientando para que se ergue-se. João Paulo levantou-se aturdido.
- E o carrinho, mãe? Indagou o rapaz.
- Que fique pros porcos, gritou enraivecida Nazaré.
- Não, mãe, contestou João Paulo e concluiu: é o nosso ganha pão.
Já irritado, Jerônimo tirou do bolso o dinheiro e o que fora roubado. João Paulo ao ver tudo aquilo arregalou os olhos e berrou:
- Eita porra, pai!!!
A família largava o carrinho de reciclagem, sem olhar para trás. No entanto, aquele utensílio não era apenas um carrinho: era o único bem material da família. Deixar o carrinho alí ao leo, por alguns minutos, deixou o garoto João Paulo triste de chorar. Para ele, era como deixar alguém a quem se ama para trás.
O centro da cidade dormia e era essencial saírem dalí.
Sucedeu que a fuga jogou a família para uma cracolândia, uma favela quase impenetrável pela polícia.
Logo a família estava na casa de uma estranha, cujo nome era Tiffany, uma travesti.
A família não tinha escolha, era a casa dessa completa estranha ou a rua. A casa era a deterioração dos tempos: as paredes pichadas, o reboco à mostra, igual a um corpo repleto de feridas em carne viva.
A casa tinha uma sala, um quarto e um banheiro, além de um quintal com um lindo coqueiral que se sobressaía diante de todo cenário.
A sala havia um sofá velho, que Tifanny havia encontrado no trabalho de catadora. O ambiente estava acumulado de lixo, material de reciclagem e preservativos usados. Era só nisso que a sala se resumia: lixo e mais lixo e escuridão, pois na casa não havia luz elétrica.
No quarto havia uma cama, um colchão que exalava urina e esperma: um cheiro nauseante de sexo sujo.
Quando Nazaré foi ao banheiro, foi pega de surpresa: havia apenas o espaço do vaso sanitário. Na na loucura do vício, Tiffany tirara o vaso para trocar por drogas. Nazaré, então, urinou alí mesmo no buraco, onde deveria ser o vaso, mas antes teve que matar várias baratas que saiam dali e se perdiam dentro da casa.
O tempo não existia naquele lugar. A vida tinha parado assim como o tempo: o dia, o sol e a noite se misturavam assustadoramente. Eram quase quatro joras da manhã. Foi o céu imponente que iluminava sorrateiramente a casa que também servia de relógio.
- Vai lá comprar 5g, vai! Ordenou Jerônimo.
- Na hora tio, disse a travesti que logo se foi na escuridão.
Para ela, a família representava a sorte. Sequer perguntou como pessoas tão miseráveis haviam conseguido tanto dinheiro, nem indagou se estavam fugindo. Aquilo não importava.
Antes da família de Jerônimo tê-la encontrada, Tiffany acabará de fazer sexo oral num idoso inflamado por sexo. Ganhou cinco reais e, logo, foi comprar a droga quando encontrou a família na bocada.
Foi pura sorte, imaginou, estava feliz. Evidentemente o velho lhe deu sorte, imaginou.
Nem sempre foi assim para vida de Juliano, antes de se tornar Tifanny. O rapaz era apenas um garoto que sofria bullying na escola, os pais não o aceitavam, porém o respeitavam, em especial o pai Augusto.
Augusto amava o filho acima de tudo, não o julgou nem quando Juliano, um belo dia, pediu aos pais que agora o chamasse de Tiffany. Augusto respeitou a decisão do filho. Ele sempre sonhara em ser pai de uma menina, mas Juliano era sua filha mulher que, apenas, nasceu num corpo de homem.
A mãe Aurelice não se conformou e bateu tanto no filho que Augusto teve que se meter na surra. Às vezes tudo vinha na cabeça da travesti, tipo quando a mãe o expulsou de casa. Depois de quase três meses vivendo nas ruas, conheceu o crack e desde então não parou.
Mesmo depois, quando aos prantos, Augusto encontrou a filha se prostituindo a implorou para voltar para casa. Meses depois, Aurelice morreu de câncer, sua religião não permitia o tratamento.
Desde a morte da mãe, Tiffany "abandonou Deus". Dois anos depois, o pai morreu de câncer no pulmão. E agora ela estava sozinha no mundo e aos 27 anos vivia na mais pura miséria e adicção severa.
Quando Tiffany chegou, todos a esperavam ansiosos e aflitos. João Paulo se escondia atrás da velha porta, com a vassoura nas mãos como se estivesse à espreita do inimigo.
Nazaré estava a brigar com o marido Jerônimo, mas tudo se apaziguou quando as drogas chegaram.
Eram cinco da manhã quando Jerônimo ofereceu cinquenta reais para Tiffany ir buscar o carrinho. Ela aceitou e, de imediato, inalou mais um pouco de droga e foi. Quando se aproximava das coordenadas que Jerônimo que havia lhe explicado, parou e deu outra usada na droga, que havia tirado às escondidas da família.
Quando Tiffany voltou, a família estava desnorteada em face o dopping. A travesti, logo, pediu ajuda a João Paulo, que ao ver o carrinho encheu os olhos de lágrimas.
Para ele, João Paulo, o carrinho ia muito além do ganha pão da família. Foi, por muitas vezes, sua casa, seu quarto, sua cama, seu teto. Foram incontáveis às vezes que dormia ali em meio ao lixo na idealização de uma cama e de um cobertor quente nas noites frias do desamparo.
Tiffany sorriu, estranhamente ela se sentia como a muito tempo não se sentia, uma heroína. Quando o carrinho se encontrava estacionado na sala, tomando o lugar inteiro, todos foram para o quarto.
Exausta do trabalho e de várias noites acordada, Nazaré puxou água da bomba d'água no quintal e se banhou. Quando a sede chegou, a família ia pegar água na bomba d'água. A miséria naquele local era tão natural que nada era questionável, apenas se respirava e se vivia.

VOCÊ ESTÁ LENDO
A Sagrada Família
AdventureDissecando a fome e o que existe de mais repugnante, a doença dos vícios, a escravidão e a profunda miséria humana. Este é A Sagrada Familia: Pai, mãe e filho dependentes químicos, moradores de rua que vagam como andarilhos por todo lugar carregando...