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A fome, perante o sol, lhes consumia tanto pelo desejo de usar droga quanto pela vontade de comer qualquer coisa. Nazaré, pela ao milésima vez, olhou ao redor e, logo, viu um grupo de crianças descalças e sentadas no chão da Praça da Fonte a comer triste farinha seca. Nazaré, então, caminhou na direção das crianças e lhes pediu um pouco de farinha para comer. As três crianças, que aparentava ter entre 9 e 11 anos, dividiram com a família de Nazaré aquela farinha que, assim como Jesus Cristo multiplicou o pão, também elas o fizeram dividindo o pouco que tinham. A fome, então, foi despistada. Jerônimo, de pronto, teve uma genial ideia da família caminhar à volta da praia a quase um quilômetro dali. Preguiçosamente foram arrastando consigo o carrinho de reciclagem quase vazio.

Caminharam, um pouco mais de quarenta minutos, em um silêncio sepulcral. Eram quase cinco horas da tarde e o clima de por-do-sol se fazia triste. A orla praiana e aqueles enormes prédios se fazia uma fonte a ser perscrutada, porém eles não eram os únicos. Num instante, Jerônimo estava a brigar com um morador de rua. Ambos acharam, no mesmo saco de lixo, algumas peças de madeira que poderia valer algum dinheiro. As pessoas que, ali passavam, olhavam a briga e João Paulo, o apaziguador, tentava acabar com aquela briga até que, derrotado, o morador de rua que estava a disputar com Jerônimo desistiu, mas revoltado jurou vingança. Ao olhar o objeto da briga, uma santa em esculpida em madeira pintada, no caso uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, Nazaré estranhamente não via a escultura como algo para vender para o uso de drogas. O fato de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida era para Nazaré como um milagre pela improvável possibilidade de tal estar embrulhada no lixo. Aquilo tocou Nazaré de tal maneira que a mesma foi jogada aos territórios da infância e de sua primeira comunhão. João Paulo e Jerônimo não entendiam tanta comoção da mulher, que chorava abraçada à Nossa Senhora Aparecida.
Jerônimo, que havia lutado tanto pela escultura em madeira, não cogitou de tomar da mulher o troféu da dita briga. O marido, então, deu à Nazaré, sem nenhuma palavra, a imagem da santa. Não entendia, de nenhum modo, porque seu gesto o deixava feliz e não lezado.
- Vamos para igreja! Disse Nazaré após minutos de silêncio.
Todos concordaram. Por pura coincidência ou obra divina, havia a pouco metros dali uma paróquia. Ao chegarem, logo viram mendigos, iguais a eles, sentados com mãos estendidas a pedir esmola. João Paulo ferido sentou-se à porta da igreja ao lado do pai. Eles se recusaram a entrar na igreja por conta de suas vestes. Nazaré, por vez, entrou sozinha enquanto sua família a aguardava e, aproveitava a circunstância, para mendigar nas escadarias dali.

Havia, no sagrado recinto, poucas fiéis que ali rezavam. Nazaré, tímida e imunda, adentrava ali em busca de conforto com a imagem de Nossa Senhora Aparecida afundada no peito. Aquela cena, chamou a atenção do padre que, de imediato, se aproximou da mulher que chorava.
- Na paz com Senhor, minha filha.
- Na paz com Senhor, padre.
- Nossa Senhora Aparecida, bela escultura, disse o padre.
- Deus me deu, a mim, do lixo.
O padre fez uma estranha expressão de que não entendia a mulher.
- Senhor padre, perdão, é que essa escultura bela como o senhor disse, foi achada no lixo.
- Hoje as pessoas têm pouco respeito com religião, de modo geral.
- Mais foi presente de Deus, senhor padre.
- Tenha um bom começo de noite, minha filha e que Deus te abençoe, disse o padre sem continuar a entender a explicação daquela mulher pedinte que trazia em seu seio uma imagem de Nossa Senhora Aparecida.

Sozinha, dentro daquele templo sagrado, embora suja, perdida e afundada com a família na miséria, Nazaré rendia-se diante de Deus e resgatava sua fé perdida por anos nas sombras das ruas e das drogas. Os fiéis observavam a mulher aos trapos como se sua presença, por estar ali, estivesse a cometer um sacrilégio. Mesmo diante dos olhares de repúdio, Nazaré mantinha fixos os olhos na imagem de Jesus Cristo crucificado e pedia forças. Abraçada com a imagem de Nossa Senhora Aparecida, jurou por todos os santos que sairia daquela vida.
Quando saiu, João Paulo e Jerônimo a esperavam. O carrinho de reciclagem estava quase cheio, porém ali não havia lugar para vender o que pegaram. Jerônimo estranhava a mulher que parecia tão calada e instrospectiva.

Horas depois, estacionaram num canteiro central de uma avenida, no qual havia grande grupo de jovens bebendo e ouvindo uma espécie de música estranha ao ouvidos da família, que exausta que ao se aproximar dos jovens viu ali uma maneira de ganhar dinheiro, de beber. Assim que chegaram, João Paulo sentou-se no chão e, com o braço enfaixado, fez uma cara de pedinte que partia o coração de qualquer pessoa. Nazaré e Jerônimo abordavam cada um dos jovens a pedir ajudar para comer e para comprar o remédio do filho doente. Alguns fingiam não ouvir os pedidos. Uns ajudavam, outros não. A arrecadação não foi como imaginavam, porém Nazaré e Jerônimo ficaram a pedir a cada carro que parava no sinal. Uma hora depois, já tinham uma grana ainda que não fosse suficiente. No entanto, João Paulo pálido, clamava por comida e, de modo estranho, Nazaré não pensou na droga e sim em alimentar o filho .

Sem pensar duas vezes, Nazaré gastou todo dinheiro com comida. Amontoaram-se no meio do canteiro da avenida, que estava repleto de jovens bêbados e drogados. A família via tudo, até ria, mas os três estavam exaustos demais e, logo, adormeceram aos gritos daquele grupo de jovens felizes por fora e infelizes por dentro.

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