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Um sentimento de desalento pairou na Família Silva. Esse era o sobrenome da família: Silva, tão comum quanto o estado que agora se encontrava diante, outra vez, da praça das fontes. João Paulo imaginava que certamente Gustavo já havia terminado o serviço. Agora estaria usando; arrependeu-se de ter ido e, ao mesmo tempo, não. Uma brilhante ideia veio na cabeça de João Paulo.
- Vocês ficam aqui que vou sair pelos terminais a pedir dinheiro para comprar caixa de bombons para vender, informou ansioso.
- Meu fii é um gênio, afirmou sua mãe enquanto abraçava o filho, que cheirava a lavanda.
- Me esperem, disse ele.
- Vá, meu fii, Deus lhe guarde, falou o pai.

Não era a primeira vez e, de certo, a última que fizera isso. Entrou no ônibus lotado, utilizou do pouco conhecimento bíblico para tocar o coração das pessoas.
- Boa tarde pessoal! Sou João Paulo, mais um trabalhador em busca de uma oportunidade. Estou agora nesse coletivo para pedir ajuda desse povo abençoado, nesse fim de tarde. Alguém que possa, pela misericórdia de Deus, pagar minha passagem para assim eu fazer a divulgação do meu trabalho?

Ninguém deu ouvidos ao que ele disse. Com as mãos vazias, a única arma era a palavra e odiava falar em público - aquilo era o último recurso.
- Cidadãos, Jesus disse: amai ao próximo como a ti mesmo. Peço a todos que, em nome de Deus, algum abençoado, desse coletivo, possa pagar minha passagem.
Dois minutos de silêncio até que uma senhora pagou sua passagem. João Paulo agradeceu. Agora ele ia para a parte dois.
- Abençoados, como falei sou João Paulo, filho de Deus como todos aqui. Estou pedindo a ajuda desses cidadãos: alguma moeda, de qualquer valor, para que eu possa dar continuidade ao meu trabalho de vendedor ambulante. Hoje antes de sair de casa, deixei minha filhinha de três anos chorando, pedindo comida. Chorei junto de minha filha, pois eu não tinha nada para matar a fome da minha família. Alguém aqui já passou fome?
Ninguém que estava no ônibus respondeu. Sentiu que deveria ser mais incisivo nas palavras.
- Graças a Deus que ninguém aqui já passou fome, mais nesse momento estou a dois dias sem comer e minha mulher e filha estão a minha espera para se alimentar. Quem poderia me ajudar: qualquer moeda de valor serve: 1 real, 50 centavos, 25 centavos,10 centavos e, até mesmo povo de Deus, 5 centavos já é uma ajuda, pois "o muito sem Deus é nada e pouco com Deus é muito".
Terminado o discurso, observou que poucos davam importância e outros já estavam emocionados. Passou então, miúdo e abatido, entre as pessoas com mãos estendidas a pedir dinheiro. O ônibus estava a entrar no terminal. Havia conseguido 5 reais em moedas. Desceu do ônibus animado, pois até que havia começado bem. Era começo de noite e horário de pico. O terminal estava lotado. Todos por ali tinham pressa, exceto ele, porque quem vaga não tem pressa, não tem direção, não tem porto seguro. Sentou no chão, fez uma cara de pedinte e, sentado mesmo, estendia a mão ao vazio daquele multidão que não o enxergava em momento algum.
Até que um louco, que logo notou pelo cheiro que era de sua ciência, puxou assunto. O homem que aparentava ter a idade de seu pai. Estava vestido com uma estranha desarmonização de estilo de roupas. Uma calça jeans colada e suja, uma camisa igualmente suja e um terno tão velho, de um preto opaco. Calçava um tênis vermelho e outro branco amarelado.
- Tu tá bem tu? Perguntou o homem com tanta rapidez que logo João Paulo notou que era um louco e não um drogado como ele.
- Tô, mah, respondeu sem lhe dar atenção.
O estranho homem que sentou ao chão, ao seu lado, tirou do bolso do surrado terno várias e várias moedas.
- Bora comigo bora, comprar minha passagem pra eu voltar, eu voltar pra o sertão.
João Paulo sentiu como se aquele homem tivesse caído do céu como um anjo esquizofrênico para seu uso. João Paulo, imediatamente, pensou no seu íntimo: "hôoo moleza".
- Nós vai sim viu, qual teu nome, bicho ?
- Sou Raimundo, sou bicho não viu, sou animal bicho não, sou Raimundo do sertão de Juazeiro do Norte viu, do Juazeiro do Norte viu?
Respondeu o homem que usava uma linguagem de repetições rápidas de palavras que o pertubavam e o torturavam de tal maneira que cada repetição que, involuntariamente falava, batia com os punhos na própria cabeça como assim pudesse auto-corrigir.
- E quanto custa, Raimundo, essa passagem? Perguntou astuto João Paulo.
- Eu tô perto, tô perto viu.
- Falta quanto? Perguntou novamente o garoto de rua.
- Mah, eu só sei que sei que eu mah só sei que tô perto mah perto já.
- Vamos entrar nos ônibus e pedir ajudar, digo que você é meu irmão doente e tu não fala nada viu? Pra dar certo, sugeriu João Paulo, que na sua mente doente ia carregar Raimundo aos terminais a pedir dinheiro e depois iria roubá-lo.
- Tu mah, tu é intiligente, macho, intiligente viu mah?
- Bora nessa, mano Raimundo.
Logo levantaram do chão imundo do terminal e entraram no ônibus que tinha como itinerário outro terminal, que levaria uns quarenta minutos para chegar.

Ao entrarem no ônibus, de imediato João Paulo se anúnciou:
- Boa noite, gente abençoada!
Poucos responderam. Para não ficar constrangido, logo falou:
- Boa noite, povo de Deus, quem crer em Deus dar uma boa noite aí.
Logo todos do ônibus deram boa noite. Eram um jogo pelo qual quando se mexe com o divino as pessoas sempre cediam.
- Amados e amadas, estou aqui com meu irmão epilético chamado Raimundo. Oh povo de Deus dá uma boa noite aí para meu irmão Raimundo quem crer que Jesus é nosso salvador.
Todos deram boa noite, então João Paulo sentiu que aqueles passageiros lhe renderiam um bom dinheiro.
- Gente, estou aqui juntamente com meu irmão e falo por ele porque mesmo sendo meu irmão mais velho, nossa mãezinha quando faleceu pediu para eu cuidar dele. Peço ajudar para todos: alguma moeda pra gente comer. Estamos há dois dias sem comer. 1 real, 50 centavos, 25 centavos, 10 centavos e, até mesmo, 5 centavos pois "o muito sem Deus é nada e o pouco com Deus é muito."
Raimundo ouvia tudo em silêncio, sentando na cadeira do lado da janela. O ônibus estava lotado, mas ninguém querias sentar ao lado de Raimundo. João Paulo passou por todos e cada um ajudou. Ao chegar ao terminal, foi logo para outro e assim foi até às dez da noite. Ao todo eram um pouco mais de 50 reais de moedas. O dinheiro estava guardado com Raimundo. Iriam dividir quando sentassem exaustos no mesmo terminal que se achavam.
- Raimundo, vamos no centro comprar sua passagem? Sugeriu maliciosamente João Paulo.
- Lá vende, mah, vende lá né mah? Lá mesmo?
- Mermo eu tô dizendo eu sou é amigo do cara, mah.
- Pois bora, mah, pois nós vai.

Sentados na parada de ônibus, dentro do terminal, que agora estava quase vazio, ambos cansados de si mesmos e de até ouvir eles próprios. Alguns vendedores ambulantes, que faziam seu trabalho dignamente, encaravam os dois com ar de raiva. Aqueles dois vagabundos que ganhava dinheiro com mentiras e fingindo ser trabalhadores marchavam quem, realmente, trabalhava nesse setor honestamente.
- Vocês não temem os castigo de Deus não? Perguntou um vendedor que havia vendido quase nada.
João Paulo e Raimundo não responderam, não deram atenção. Quase uma hora depois, o ônibus para o centro da cidade veio. Entraram ansiosos no ônibus. Na cabeça de João Paulo, seus planos logo logo iriam se realizar.

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