Arisca, sem entender o que aconteceria naquela reunião onde se garantia que era viável ficar sóbria. Que situação seria aquela? Tímida, Nazaré terminava de tomar o café e quando as pessoas ficaram de pé, ela os imitou. Nazaré imitava até os mesmos gestos, mas quando tinha que dar as mãos, em um círculo, hesitou. Tinha vergonha e examinava aquelas mulheres e aqueles homens alí limpos, com mãos e unhas limpas enquanto já as suas sujas eram usadas pelo uso das drogas, para manipular o sexo de algum "macho escroto" por algum mísero dinheiro.
Nazaré se sentia tão pequena e inexpressiva que já estava arrenpendida de estar alí. Vou ficar só pelo café, pensou ela. Mas, de repente, uma alta e alva mulher, de cabelos longos e negros como Iemanjá, abraçou-a forte, muito forte. Faz tanto tempo que não sou abraçada, pensou Nazaré, e ficou desajeitada. Nazaré fedia a drogas, a sexo, mas para aquela mulher que lhe abraçou, seu cheiro parecia não a intimidar. Aquela mulher apenas lhe disse: "seja bem-vinda, irmã."
Nazaré chorava e com o gosto salino das lágrimas, deu aos mãos e começou a oração e todos, igualmente todos repetiam com fé que lhe rasgava o peito:
"Deus, conceda-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar. Coragem para modificar aquelas que posso e sabedoria para saber a diferença."
E acontece que cada partilha, Nazaré não conseguia esconder as lágrimas. Nazaré era aquela que todos foram no passado. A identificação, o fundo de poço de cada um que partilhava como outrora era a vida, era ela simplesmente. Todos estavam falando dela sem nunca a terem visto.
Havia um momento de pausas e de leituras voltadas para ela. Aquele livro branco o qual o orador lia, a dissecava, era como se estivesse nua. A verdade era uma luz que a despia e a deixava sem chão. Até que chegou o momento que se caso alguém alí presente quisesse ser membro, apenas levantasse a mao. Tímida, mas com uma fé que mudaria toda a sua história, Nazaré levantou o braço magro. Todos batiam palmas para ela, logo ela, uma ladra, uma drogadita, uma prostituta velha, tão velha como sua própria fome crônica. Naquele momento, Nazaré sentiu Deus tocá-la, abraçá-la, porque Deus a aceitava ainda que em trapos, ainda que imunda diante de todos. Ela era uma filha e precisava de uma mão. De repente, aquele momento de ontem onde beijou pela última vez a lata, que chorou pela vida, pela amiga morta, pelo filho em coma, pelo marido. Ainda estava tão presa ao ontem, mas sabia que não existiria uma segunda chance; que não haveria um depois e aquilo "adeus ao desfiladeiro" causou uma dor e um vazio tão grandes quanto a fome. Nazaré, não há mais volta para o teu mundo doente, chegou a cura, a tua cura.
A reunião acabara. Feliz com aquele chaveiro branco que dizia: "Só Por Hoje", Nazaré foi abraçada por todos, compraram comida: houve uma lista do grupo.
Quando todos foram embora, Nazaré acendeu um cigarro e pensava o que diriam com o sumiço dela. Aquilo era o de menos, ela caminhava com uma alegria estranha.
Ao chegar ao hospital, Nazaré deu de cara com um marido. Ele não tinha sequer uma expressão de raiva, apenas a abraçou tão forte, como se depois dali ambos soubessem que jamais teriam outra chance outra vez.
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A Sagrada Família
AdventureDissecando a fome e o que existe de mais repugnante, a doença dos vícios, a escravidão e a profunda miséria humana. Este é A Sagrada Familia: Pai, mãe e filho dependentes químicos, moradores de rua que vagam como andarilhos por todo lugar carregando...