No terceiro dia, o cansaço e o uso ininterrupto de drogas e álcool acariciava a todos com requintes de perversidade.
Não havia mais dinheiro e nem razão para estar alí.
Nazaré e Tiffany dormiam juntas na cama. Na verdade era um catre cujo terrível cheiro de esperando ressecado e urina em nada afetavam o profundo sono que abatia sobre ambas.
A vida era, enfim, um ócio insuportável. Nazaré, Jerônimo, João Paulo e Tifanny raspavam os cachimbos milhares e milhares de vezes em busca de alguma sobra de outrora.
Era uma violência íntima para todos, uma tortura que não tinha fim.
O desespero do fim era algo tão imenso que nutria toda a dor, toda a solidão e fazia que tudo se resumisse em uma única meta: mais drogas.
Aquela casa parecia um albergue, uma válvula de escape, um remédio amargo para as dores secretas de cada um ou um encorajamento para uma descoberta, talvez uma fórmula mágica para a paz. A casa era reino, covil, caverna e todos que alí entravam em penitentes, nunca conviva ou hedonista.
Naquela casa havia, portanto, uma liberdade jamais vivida, uma magia indescritível até que, num determinado momento, ela acabaria por indisfarçadamente consumir toda essência de ser.
Por fim, a simples válvula de escape ou lazer tornou-se uma prisão imensa sem grades que roubava todo dinheiro, toda roupa, todo bem, para depois se converter homem e mulheres em ladrões, mentirosos, prostitutos, jogados aos extremos abismos da miséria.
E, de repente, não sobrou nada além do destrutivo desejo de usar, acima do amor, do respeito e da dignidade.
-Viramos invisíveis! Gritou Tiffany.
- Paranoia é essa? Tá doida? Questionou Jerônimo.
- Onde está a paz? Retrucou a travesti.
O silêncio ecoava em gritarias pelas ruínas da casa.
Veio um terceiro dia, sim, um terceiro dia, mas parecia um fim a mostrar a todos que morrer seria o mais honroso atô a ser cometido.
Cogitou Tiffany um assalto, mas ainda não era ladra. Nessa hora os pais estariam a se mexer no túmulo por tamanho desgosto.
A depressão, enfim, se abateu sobre todos e os colocou, outra vez mais, na sarjeta e num extremo da miséria não material, mas puramente espiritual.
Uma parte de Tiffany precisava do sortilégio da solidão, da ausência de voz e de possíveis alternativas para alimentar o ciclo vicioso. Porém estava exausta dessa solidão que só nutria o seu modo auto-punitivo e comiserativo.
Desejava a corrompida família por perto, nem ela e nem a família poderiam voltar para o útero e nascer outra vez, estavam condenados não pela miséria que viviam dia a dia. Não pela miséria da falta do pão de ontem, mas pela vida, sim, condenado a viver, isso seria uma prisão? Uma escolha? Ou talvez uma... dádiva... Exato, pensou ela: uma dádiva!
Não era paranoia, dizia a si mesma dentro do silêncio do silêncio que a casa ecoava em uma só voz tímida, porém forte...
- Uma dádiva! Exclamou tibiamente.
- Ela tá louca! Disse Jerônimo.
- Vamos embora? Sugeriu João Paulo.
- Não, aqui é a casa de vocês, não lembram, afirmou Tiffany.
Nazaré calada estava e calada ficou. Para ela, Tiffany não era uma ameaça. Nazaré enxergava nos olhos dela a dor da ausência dos pais, de alguém para, pelo menos, quebrar o silêncio abissal daquele casa que mais era um auto retrato do fim, das feridas inflamadas de uma tragédia urbana que nunca chegaria no fim.
Um viciado reconhece o outro, está nos olhos, ninguém disse, os olhos revelam.
Horas se passaram e, finalmente, pai e filho vencidos adormeceram. Agora não havia o que temer, não precisava ter medo. Tombaram ambos no sofá da deteriorada sala. Pai e filho cessaram os questionamentos e acharam conforto e paz que apenas o sono proporciona.

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A Sagrada Família
AdventureDissecando a fome e o que existe de mais repugnante, a doença dos vícios, a escravidão e a profunda miséria humana. Este é A Sagrada Familia: Pai, mãe e filho dependentes químicos, moradores de rua que vagam como andarilhos por todo lugar carregando...