Fora do hospital, enquanto fumava, Nazaré mantinha um olhar abstrato no vácuo, uma vez que sua mente ia até o marido - se ele ainda o fosse, pois acreditou ter lido no rosto do seu companheiro um fim para a vida deles a dois.
Na verdade, a meta de Nazaré era manter a sobriedade e sair daquele hospital, o qual, aos poucos, virara sua casa.
Na calçada, um idoso, que vendia café, ouvia um rádio. O locutor, com voz rouca, anunciava no rádio:
"Travesti e usuária de crack é encontrada morta. Ao que tudo indica, segundo a polícia, a travesti cometeu suicídio. O caso da morte da travesti ainda está sendo apurado".
Nazaré jogou o cigarro e, em lágrimas, voltou para o hospital. Sua cabeça girava: o filho imóvel na cama, o marido que se fora, a morte da única pessoa, que tinha tinha amor e simpatia. Sua amiga, uma guerreira, não a travesti usuária cuja morte fora anunciada no rádio.
Nazaré caiu em pranto e o desespero lhe roubou noites de sono e quando o sono vinha trazia consigo terríveis pesadelos.
No dia seguinte era a reunião do grupo. Andaria três quilômetros para chegar até lá, mas obstinada iria para cada reunião. Sempre alguém a trazia de volta de carro, ou moto, para o hospital. Aquela irmandade a fazia ser ouvida, abraçada. Era um símbolo de força, fé e esperança onde todos a adoravam. Quando tinha seu tempo para partilhar, falava sobre toda a sua vida, mas nunca continha as lágrimas que teimavam em nascer de seus olhos exaustos .
Nazaré dispensou a carona. Desejou caminhar para assim, quem sabe, o destino a faria cruzar com Jerônimo. De certo, tinha certeza, que se cruzariam no percurso de três quilômetros. A cada passo, o coração apertava, o vazio crescia, afundando na sobriedade, nas lembranças, até que viu. Nazaré parou, jogou o cigarro fora, observou o catador, mas não era ele, não era seu homem, seu marido. Seu marido. Ela ainda o chamava assim, com a vã esperança de tê-lo, ainda que esse sentimento fosse uma eterna tortura do reencontro, da mudança. Parada como uma árvore ao chão, lembrou das vezes que, bêbado, Jerônimo cantava para ela:
"Queixo-me às rosas,
Mas que bobagem,
As rosas não falam...
Simplesmente as rosas exalam,
O perfume que roubam de ti..."Cartola era ele, ela a rosa, os espinhos o mundo de drogas no qual toda a sua família afundara.
Seguiu o caminho. Em cada esquina, sentia que poderia vê-lo, contrariando a intuição que nunca a enganava.
Seguiu por todo o caminho ao som de Cartola na cabeça, cantando para si mesma com o peito vazio. Acendeu um cigarro de mãos trêmulas. Na porta do hospital, logo ao entrar, a assistente social a chamou com urgência. Com lágrimas nos olhos, Nazaré bateu de frente com os olhos de Libânia, a assistente social que a aguardava.

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A Sagrada Família
AdventureDissecando a fome e o que existe de mais repugnante, a doença dos vícios, a escravidão e a profunda miséria humana. Este é A Sagrada Familia: Pai, mãe e filho dependentes químicos, moradores de rua que vagam como andarilhos por todo lugar carregando...