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Juliana aguardava impaciente o ônibus atrasado. Tinha urgência de chegar O mais rápido possível em casa depois de mais um programa com outro velho de fetiches que lhe causavam náuseas.

Sozinha, era noite, entretanto não temia a noite, poderia muito bem pagar um táxi, mas lhe custaria metade do dinheiro do trabalho. Metódica, não gastava o que tinha em futilidades, ajudava o pai que sofrera Acidente Vascular Celebral e que lhe causou ao menos sequelas para a vida inteira.

Aquela parada de ônibus era um breu, Juliana não parava de pensar no pai. Esperaria mais cinco minutos e, caso o ônibus não chegasse, pegaria um táxi.

Há vinte metros à frente, dois homens caminhavam em sua direção. De certo, pensou Juliana, é assalto. Quando Jerônimo anunciou o assalto, pediu lodo a bolsa e ela reagiu. Na bolsa continha todo dinheiro obtido nos programas, fruto da beleza morena do corpo, não era justo, pensava.

Não seria tão fácil roubá-la. Juliana, há meses, juntava dinheiro para comprar uma cadeira de rodas dignas para seu estimado pai. Tal sonho atrasaria, caso a moça não reagisse.

- Bora, vadia, passa a bolsa disse grosseiramente Gustavo.

Agarrou a bolsa como quem se agarra à própria vida e não atendia aos pedidos dos meliantes.

Gustavo violento, deu umas bofetadas no rosto da garota até o sangue jorrar pelas faces morenas e respingar nele. Descarregava na miça toda abstinência, toda raiva pela sua petulância.

Jerônimo puxava com força a bolsa, mas a garota tinha a força de uma leoa, apesar da insistência violenta do desnutrido e macérrimo ladrão que era Jerônimo.

Ela gritava alto, pedindo socorro. Veio outro tapa, até Juliana tirar rapidamente do cós da calça o discreto canivete, cuja a lâmina espelhava toda insegurança e medo. Juliana sempre saía com tal arma, mas rezava para nunca usá-la em ninguém. Todavia naquela ocasião, diante daquela agressão e dos incontáveis tapas no rosto, o belo rosto de traços finos e lábios grossos, ela não hesitou.

Quando trêmula investiu contra a barriga do franzino delinquente, que aparentava ter apenas 20 anos, .Jerônimo, de súbito, se afastou temendo pela própria vida.

A mulher gritava, era uma cena terrível. O viciado se fora, restava um menino, Gustavo, agora banhado de sangue jogado no chão frio.

Jerônimo corria em direção ao nada em fuga. Juliana grita, dessa vez de horror pelo que fez. O sangue a nauseou. A vida invertia os papéis, de vítima para vilã.

- Alguém chama um médico pelo amor de Deus! Suplicava.

Juliana, paralisada, assistia a cena como se não fosse parte dela. Havia sangue em suas mãos. Como em toda a sua vida, a tragédia a seguia.

O garoto agonizando ao seus pés, de mãos sujas buscando no vácuo do espaço outra chance, com estômago perfurado por ela.

O centro da cidade exatamente naquele local parecia adormecido. Não havia médicos, polícia, apenas ela, um ferudo e um crime.

Juliana sabia que poderia ser presa. A vida lhe veio como em filme. De repente, era criança rindo das piadas do pai. Antes da doença, a vida era maravilhosa, ainda que Chicão (apelido carinhoso) fosse um pai ausente, no entanto quando ele estava em casa trazia consigo toda alegria e maravilhas do mundo.

A mãe e ela sempre de olhos na janela a espreitar por ele, com ouvidos atentos, pois o homem anunciava a chegada buzinando. Aquele barulho alto que danificava a audição, afastava as sombras, as saudades, o buzinar daquele caminhão velho trazia de volta à vida às duas.

Recordou tudo diante de Gustavo que sangrava imóvel. Dois minutos convertidos em eternidade, o garoto se contorcia de dor, ela parada como estátua de cera a derreter-se.

Irene, a mãe, lhe veio em mente juntamente com o falecido Oscar. Não havia sentido pensar nessas coisas agora, entretanto estar ali no coração da morte outra vez, depois da perda de Oscar, e da quase morte do pai. Sentiu-se num resgate num assalto, parecia a própria omissão de socorro.

O garoto silenciou, o sangue jorrava como torneira aberta e deságuava no bueiro do esgoto próximo a parada de ônibus, onde o roubo foi anunciado.

Juliana se levantou, abriu a bolsa, tirou o rolo de papel higiênico, limpou o sangue do estranho das mão. Enxugou as lágrimas, sem olhar para atrás, seguiu em direção contrária para qualquer lugar longe daquela maldita parada de ônibus.

No silêncio de uma noite cúmplice e seja, morria o homem, enquanto nascia uma mulher.

Juliana não olhou para trás e como diriam os Romanos: sorte foi lançada. O que nasce em Vegas, morre em Vegas.

No hospital, Nazaré pressentia a recaída de Jerônimo. Tiffany se negava a rever o marido de sua amiga ao mundo das trevas. Para Nazaré o que importava era um menino magro que dormia na UTI e pelo qual, ela, mulher suja, esfarrapada, cheia de piolhos, daria mil vidas por ele se mil vidas tivesse.

Nazaré não tinha mil vidas, mas tinha a fé e a luz dos olhos do Dr. Martim mantinham acesa aquela fé.

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