Depois do café da manhã, o abrigo era fechado e abria à noite. O lugar, em suma, era apenas para pernoite e, assim, dava aos desassistidos do sistema um lar aparente. Mas o abrigo, de muito, tinha serventia porque, mesmo sem luxo e conforto, oferecia muito acolhimento aos desabrigados. Era para todos quase a última saída.
De volta às ruas, rapidamente como numa ligação sensitiva, a família estava outra vez reunida. Estava a zero de coisas materiais e à procura de satisfazer necessidades tão vitais como beber e comer.
Para aquela família, a droga se revestia de uma necessidade. Jerônimo, Nazaré e João Paulo deram uma volta no centro da cidade puxando consigo o carrinho de reciclagem.
Tinham aqueles três uma ansiedade atroz de logo conseguirem o dinheiro necessário para as drogas.
Às dez da manhã, era o castigo do sol aos que não têm sombra para ficar. Era mais uma penitência tão comum se comparada ao desconforto e desumanidade que se infligiam àquela família esquecida por Deus e pelo Governo.
João Paulo precisava defecar. A dor na barriga lhe fez temer que faria ali mesmo nas calças. O básico, para quem vive nas ruas, é desafiador. Parecia estranho, mas para quem mora na rua, ter um banheiro é algo para se regozijar e exultar de alegria.
Os pais viviam com amontoados de lixos. João Paulo avisou aos pais para que olhassem o carrinho, pois iria "arrear a massa".
Os donos de lanchonetes ou de lojas e restaurantes não deixavam os de rua sequer entrarem para pedir água, muito menos para usar o banheiro. Existia uma fiscalização que nunca se podia driblar.
João Paulo sonhava com um lindo banheiro, de limpeza metódica, de vaso branco que ofuscasse a própria luz e com um chuveiro que jorrasse água limpa e morna. Aquilo sim era o paraíso. poderia até morrer dentro de um banheiro daqueles, que morreria feliz.
João Paulo deu uma volta na cidade e logo notou que pessoas, ao longe, antes de cruzar com ele, mudavam repentinamente de calçada. Outras o ignoravam como se ele fosse invisível, mas só reagiam ao sentirem entrar pelas narinas o cheiro insuportável de algo podre e esquecido pelo tempo e que exalava dele. Sentia sim o próprio mal cheiro, mas habituou-se a tal odor. Com o tempo, ainda que estanhasse, virou sua marca pessoal.
A fome bateu e a saga para fazer as necessidades fisiológicas o deixavam exausto e ja não se importava em baixar as calças e fazer ali mesmo ao público. Temia, entretanto, a polícia que o impedia e não a vergonha do ato em si.
Eis que se milagres existem, um aconteceu. Uma distração sim, era como uma miragem no deserto: uma lojinha vazia e uma porta semi aberta pela qual logo entrou.
"Vitória, sim, uma vitória, aleluia, Deus existe", assim pensou. Não acendeu a luz, não poderia deixar que suspeitassem que ele estava ali. Finalmente estava num banheiro. Ao sentar no vaso, era como sentar no trono - não por trocadilho, mas pela satisfação de sentar ali ao invés de acocorar-se no chão e fazer suas necessidades iguais aos bichos.
"Seguro, vitória, vitória, vitória e gratidão, obrigado, agradecia a Deus". Sussurrou de modo que estranhou porque havia tempos que não estava em um banheiro com tudo que um banheiro tem.
Fez então suas necessidades numa paz plena que só se igualava ao sono, a fome matada e a droga prestes a ser usada. Quando terminou, usou o papel higiênico, lavou as mãos, o rosto e tomou grandes goladas de água da torneira até lhe encher a barriga. Alguém bateu na porta, a paz do paraíso foi quebrada.
- Quem está ai?
Calado, nada disse, até ouvir vozes que poderiam ser funcionários a dizer que ninguém está com a chave do banheiro. Só, então, João Paulo notou que a chave estava na fechadura, abaixo da maçaneta da porta, do lado de dentro. Concluiu, logo, que certamente alguém teria usado o banheiro e, por pressa, esquecera de devolver a chave.
-Tem alguém aí? Agora a voz tinha timbre ameaçador e aquela situação o fez temer por sua integridade física.
Revolveu, então, abrir a porta e ao fazê-lo levou o murro na boca do estômago quando notaram que quem estava no banheiro era um sem teto.O dono da lanchonete, então, fez Joao Paulo lavar o banheiro. Aquilo foi humilhante e os clientes observavam a situação com naturalidade. Logo após foi chutado, saiu desmoralizado, porém feliz por ter usado o banheiro.
Os pais estavam desesperados de tamanha preocupação. Quando João Paulo relatou o ocorrido, Nazaré revoltada quis ir até onde havia acontecido o fato e fazer confusão. Jerônimo anteveio e, com algumas palavras, fez Nazaré engolir a seco a raiva.
E eis que mais uma vez, um simples sonho de João Paulo se fez real e embora dominado pela fome e pela abstinência, ainda guardava no olhar o brilho de um sonho tão necessária ao ser humano, mesmo em situação de vulnerabilidade.
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A Sagrada Família
AdventureDissecando a fome e o que existe de mais repugnante, a doença dos vícios, a escravidão e a profunda miséria humana. Este é A Sagrada Familia: Pai, mãe e filho dependentes químicos, moradores de rua que vagam como andarilhos por todo lugar carregando...