Ao voltar para o grande forte da Cruz Azul, ele banhou-se para tentar se livrar do calor do fim de tarde. Após trocar de roupa, seguiu para o refeitório do bloco leste, onde foi convidado a se juntar ao Coronel Cosmodeos em sua janta de retorno de patrulha. O Gigante bigodudo estava a abocanhar um pernil bem passado quando se sentou ao seu lado, era o prato especial do meio de semana que infelizmente tinha se esgotado devido ao horário. Alguns poucos ainda se localizavam em mesas dispersas, a terminarem suas refeições.
– E então, grande Estrela, passastes muito tempo no sol durante teu turno hoje? – Perguntou, ao notar a tonalidade escurecida que a pele do irmão juramentado já tinha adquirido. Pelo visto ao menos o grandalhão não havia percebido sua ausência.
– É... Hora extra no exterior da muralha principal... Sabe como é. – Mentiu, em expressão enfadonha ao levar a colher de ensopado meio frio ao bico.
– Ah, sim, sei como é. Ainda bem que agora que fui promovido eu não mais preciso patrulhar o exterior. – Gabou-se como adorava fazer o grande comilão de redonda cabeça calva, antes de começar a chupar o osso para remover os fiapos de carne a ele ainda presos. Foi promovido de Tenente a Coronel do exército devido a sua frequente disposição voluntária em missões de perseguição aos remanescentes dos grupos selvagens após a batalha do rio Unisteirn. Aquelas eram suas grandes paixões, comida farta e honrosa violência.
– ... Então... Como foi o final do turno do General Garth hoje? Infelizmente tive de me ausentar um pouco antes que começasse...
– Uhmm... Queres saber... Não prestei muita atenção mesmo, tudo o que ele falou foram algumas baboseiras sobre algo relacionado à feitiçaria. – Admitiu, a coçar a barba rala antes de voltar para seu osso.
– Por que eu ainda pergunto? – Questionou-se no pensamento. Em compensação às suas grandes habilidades físicas, Cosmodeos não possuía de um interesse para com as peculiaridades teóricas de ser um cruz azul.
– Se eu fosse tu, eu esquecia os blá, blá, blás do General e me preocuparia mais com o senhor Marechal. – Observou, ao repousar o grosso braço sobre a mesa para se escorar enquanto palitava os dentes com a unha.
– Arstan voltou?
– Sim, chegou de missão hoje cedo, e a expressão que levava na cara não era nada boa. Passou o resto do dia em reunião fechada com os superiores e até mesmo com o Grande Mestre na sala do conselho. Acho que notícia ruim vem por aí, melhor descansar bastante hoje de noite, Tenente Estrela. Prevejo que amanhã será um dia daqueles. – Aconselhou antes de se despedir, levantando-se para dar-lhe um grande tabefe nas costas, que quase o fez cuspir o que ingeria e engolir a colher. Não odiava o homem, ele apenas o irritava profundamente com seu jeito abrupto de ser.
Sentia falta de ir dialogar com seu amigo Swan, não o visitava fazia um longo tempo e não tinha oportunidades de falar com ele durante os horários vespertinos e matutinos. De qualquer forma, não se sentia no clima de conversar com mais ninguém naquele dia, principalmente se o que Cosmodeos lhe dissera fosse verdade, então seguiu para seu quarto no interior da muralha e lá despencou sobre seu bom e velho leito desconfortavelmente mofado. Ao menos julgava o material da cama de primeira qualidade por suportar todas aquelas quedas. Gastou um bom tempo refletindo sobre o que fez mais cedo. Naquele confuso momento, o que ele mais desejava era arrancar as poucas roupas que ela vestia e a devorar lá mesmo. Mas não pôde, não sabia porque, mas não conseguiu quebrar aqueles votos por ele feitos, votos que tanto desprezava. Pegou-se lembrando daquelas tortuosas frases: "Não tem jeito mesmo, não é?"... "Não vai dar certo... Não tem como!"... "Nunca poderemos ser realmente felizes, não com tantas preocupações... Ou quem sabe termos uma família...". O que ele iria fazer para poder desmentir todas aquelas afirmações? Perdeu uma boa parte da noite a meditar sobre o assunto. Bem depois de o mundo lá fora ter se silenciado ele adormeceu. O sonho que teve desta vez não foi bom ou assustador, mas sim estranho. Nele somente conseguiu enxergar através de lampejos. Estava escuro, sua pessoa usava uma grande espada, maior que qualquer uma que já empunhou, para decepar invulgares criaturas encobertas por sombra e sangue. Tinha uma vaga lembrança daquela arma, embora não soubesse dizer de que fonte a mantinha. Em certa parte, sentiu-se como se estivesse a voar pelos céus, a sensação de não ter nada abaixo dos seus pés era muito desconfortável. Próximo ao final do estranho devaneio, ele estava caído ao chão. Choviam grossas gotas sobre o corpo que sentia como se estivesse queimando em uma dor insuportável. Estava fraco e sua visão começava a falhar, mas antes que pudesse despertar, ele vislumbrou uma silhueta se aproximando. Era uma jovem que de rosto lhe lembrava Mayrian vagamente. Gotas negras d'água lhe escorriam rosto abaixo, não sabia dizer se eram chuva ou lágrimas. Ela estava a vestir um tipo de armadura leve e gritava pelo seu nome, implorava para que não fosse embora, suplicava-lhe para não a deixar.
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Fardos de Batalha (Em Andamento)
FantasyA jornada contida neste escrito se passa em Eingsfyre, o país que detém para si o poderio militar dos reinos do ocidente. Embora ainda sendo um reino, o domínio deste não está contido nas mãos de seu monarca, mas sim nas da Igreja, pois foi esta que...