Capítulo 3

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Em casa, tirei minhas roupas de hospital na porta, uma prática que passei a adotar desde a época de estágio. Como morava sozinho há cerca de dois anos cabia a mim a manutenção da limpeza feita por uma diarista que ia à minha casa duas vezes por semana ou quando eu a chamava. Morar sozinho, aliás, foi algo assustador no começo, já que demorei um pouco até me sentir em casa no meu próprio canto.

Depois que meu pai se aposentou ele e minha mãe venderam a casa onde morávamos e se mudaram para o interior, onde minha mãe poderia dar espaço à paixão dela por plantas e meu pai poderia ter espaço para lidar com suas ferramentas avulsas. Era uma pessoa tão ativa que poderia montar uma serralheria em casa ou mesmo uma marcenaria. Um senhor extremamente curioso, para dizer o mínimo, de quem eu herdei até certo ponto, minha criatividade.

Antes que os planos deles de mudança se concretizassem, porém, eu fui convidado para trabalhar no hospital, ainda enquanto morava com eles. Nesse meio tempo, recebemos uma herança deixada por meu avô paterno, algo que já rolava há algum tempo. Com minha parte da herança, pude financiar um apartamento, este em que moro, simples, pequeno, porém uma conquista minha.

Meus pais a princípio não entenderam muito bem, mas com o tempo o juízo foi entrando nas cabeças deles, eu já estava trabalhando há um ano, então pensei que seria uma excelente oportunidade de começar a construir minha vida. Sei que meses depois meus pais anunciaram que também estavam de mudança, já que nada mais os prendia ali e que finalmente acharam um lugar longe da cidade onde seria bom envelhecer.

Sendo o bom filho que sempre fui, dei a eles todo o apoio do mundo e desejei boa sorte nesse novo processo. Me comprometi a visita-los regularmente, o que vinha sendo falho de minha parte, já que desde a mudança fui à nova casa umas três vezes, por muita insistência de minha mãe.

Enfim, conto tudo isso para chegar ao ponto de explicar que gostaria de, finalmente, reformar minha casa e deixa-la do meu jeito, com a minha cara. Naquela noite quando cheguei em casa foi essa a sensação que tive, de que precisava dar uma nova identidade àquele lugar já que não havia mais desculpa para eu me manter tão inerte em relação ao lugar onde eu passava maior parte do meu tempo, quando não estava trabalhando.

Fui deixando minhas roupas pela casa, coloquei uma música suave para tocar, enquanto ia para o banheiro. À medida que a água quente caía sobre o meu corpo ia me lembrando do Davi. Passei pelo meu sonho erótico da noite anterior, fui ao parque mais cedo, onde nos encontramos casualmente, cheguei ao restaurante e, finalmente, me peguei pensando nos detalhes de sua roupa, em como seu sorriso estava especialmente brilhante naquele momento e, de repente, como um balde de água fria, ouvi a voz da Cris dizendo, "mas nós dois sabemos que isso não pode terminar bem".

Abri meus olhos! Respirei fundo. A água escorrendo. Silêncio. Ela tinha razão, porque não tinha mesmo como aquilo dar certo. Quer dizer, não que eu estivesse pensando em me envolver com ele, mas o simples fato de eu começar a me encantar com seu jeito, de reparar seus traços, já era um sinal de alerta de que eu não devia nutrir este tipo de expectativa. Pelo menos não em relação ao Davi.

Desliguei o chuveiro, me enxuguei, escovei os dentes, vesti uma roupa confortável e me sentei no sofá para ler alguma coisa. Mantive a música ligada enquanto lia um livro de ficção científica. Neste momento me dei conta de que eu não estava prestando atenção a nenhuma das palavras que eu estava lendo e não podia desperdiçar uma história tão boa.

Coloquei o livro de lado, andei um pouco para lá e para cá. Parei em frente à janela da sala com vista para a rua. O vento soprando gelado. Era melhor eu me deitar. Me aconcheguei à minha cama com lençóis recém trocados e descansei a cabeça sobre o travesseiro. Silêncio.

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