Quatorze

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Era um domingo preguiçoso e chuvoso. A investigadora Elisabete Branco aproveitava uma das poucas folgas que conseguiu ter nos últimos meses. Mas, ela não parecia feliz.

- Aqui, amor, pegue uma taça de vinho. – Seu namorado, Rafael Soares, um importante promotor, ofereceu a taça para ela, que a pegou sem encara-lo.

Uma garoa fina caía do lado de fora e Lis a observava com pesar. Essa época do ano sempre trazia más lembranças, deixando-a taciturna. Mas, dessa vez havia algo mais.

Bebeu um gole de sua taça, refletindo sobre o que tinha vindo fazer ali, na casa de Rafael.

- Nós vamos pedir a prisão dos envolvidos no caso Flor de Copas. Você fez um bom trabalho.

Ela sorriu para ele, mas não foi um sorriso sincero. Não precisava da aprovação dele, e a forma como ele pensava que tudo girava em torno do que ele acreditava começava a irrita-la como nunca. Quando foi que a autoridade do cargo dele passou de interessante para extremamente chata?

Nos últimos meses Elisabete tinha passado praticamente todas as 24 horas dos seus dias ocupada com o caso Flor de Copas.

Flor de Copas era um dos vários cassinos clandestinos que existiam espalhados pelos bairros nobres da cidade. Mas, desde o início Lis sabia que ali escondia algo além disso. A suspeita de tráfico de drogas e armas logo foi confirmada. Ao prenderem Antunes, conhecido popularmente como Rei, Rafael teve a certeza que tinham pego o cabeça de toda a quadrilha, mas Lis não estava tão certa. Algo a dizia que faltava uma peça, ou uma carta...

- Vamos, Lis, anime-se... Você ainda está pensando que Antunes não é o mentor de toda a rede de tráfico? Por causa do valor de uma carta, Lis?

- Rei não é a carta mais alta no pôquer. Nós devíamos levar isso em consideração. Sinto que alguma coisa não está se encaixando como deveria.

- Você está indo longe demais, Lis. Está imaginando coisas. Você quer que a investigação dure ainda mais? Nós mal pudemos respirar nesses meses. E quantos outros jogos existem em um cassino? Como pode ter certeza sobre o pôquer?

Lis deu de ombros e não respondeu, continuando a encarar a chuva que caía no jardim. Falar sobre jogos, principalmente nessa época do ano, ainda fazia seu coração sangrar. Trazia lembranças demais.

No dia seguinte fariam dez anos desde que Benjamin se fora. O dia em que saiu do jogo de vôlei e foi até a casa de Haroldo. Estremeceu com as memórias do que viu, ainda era traumatizante para ela pensar sobre isso.



Lis entrou na casa de Haro, estranhando o silêncio que havia ali. Alguma coisa a fazia continuar, não a deixando voltar atrás.

Quando entrou na cozinha, o cheiro de sangue e vômito a atingiu segundos antes da cena que encontrou. Ela gritou. Paralisada, ouvia sua própria voz como se não fosse ela quem estivesse gritando.

Seus pais não demoraram para alcança-la, parando à porta da cozinha da mesma forma que ela, tão impactados quanto a filha.

Celeste correu para o telefone enquanto Antonio tentava acudir Haroldo, escorregando no sangue que estava no chão. Haro estava amarrado à uma cadeira, machucado. Muito machucado. Todo o seu corpo parecia marcado, seu rosto não permitiria uma identificação se fosse preciso. Uma de suas pernas estava virada em um ângulo esquisito, o que gerou uma vertigem para Lis.

- Saia daqui, querida. – Seu pai disse, com a voz trêmula. – Fique na sala, Lis, por favor.

Ela andou de volta para a sala, obedecendo seu pai e passando por sua mãe que falava desesperada com alguém do outro lado da linha, talvez os bombeiros ou a polícia. Lis sentia-se como se não estivesse no próprio corpo, era como controlar uma casca vazia, que não era sua.

Cartas entre nósOnde histórias criam vida. Descubra agora