Parte 1 - Nádia

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Agosto 2003

Passaram-se quatro anos. Eu cresci e fiquei a perceber muita coisa. Era realmente verdade. O meu pai começou a bater na minha mãe porque queria mais filhos e não suportava a ideia de ela não lhos conseguir dar. Os anos foram passando e ele nunca desistiu nem se conformou. E, como se não bastasse tudo o que estava a acontecer e toda a frustração que pairava naquela casa, ele também começou a beber e a chegar a casa bêbado. Foi a gota de água. Ele transformou-se num monstro e também começou a usar-me como saco de pancada. Eu tentava não falar daquilo que se passava a ninguém e cheguei, inclusive, a faltar várias vezes à escola. Fazia como a mãe e, quando alguém perguntava, arranjava sempre uma desculpa. Só que, um dia, não aguentei e contei a verdade à madrinha. Eu confiava nela de olhos fechados e sabia que, se lhe pedisse, ela não contaria nada a ninguém e faria de tudo para me proteger.

- Nádia...? Onde foi que te magoaste? - perguntou ela, ao reparar nas nódoas negras que tinha nos braços, na cara e no pescoço. Eu não respondi. - Querida? Nádia, alguém te fez mal? Alguém te bateu? - eu continuei sem responder, mas ela insistiu - Nádia? Estás a chorar! - as lágrimas começaram a deslizar pela minha cara – Fala comigo, meu amor... Quem te fez isto? Podes confiar em mim, querida. Eu só te quero ajudar, tudo o que me contares ficará só entre nós!

- Prometes?

- Claro que prometo, querida. Alguma vez te falhei?

- O pai... foi o pai... - ela ficou petrificada.

- Foi o teu pai que te fez isto?

- Sim... ele bate-me. A mim e à mãe... A mãe diz que ele não faz por mal...

Mal acabei de falar, tive um ataque de choro. Ela fez-me deitar no seu colo e mimou-me, abraçou-me, limpou-me as lágrimas e ajudou-me a tranquilizar a alma e a tranquilizar a dor. Prometeu que esse seria um segredo só nosso e que me iria ajudar. Não permitiria que o meu pai me estragasse a vida.

Um mês depois dessa conversa com a madrinha, a mãe foi parar às urgências, pela primeira vez, com várias costelas partidas. O pai, como sempre, vestiu a pele de marido preocupado e inocente, mesmo tendo sido ele o culpado. Implorei várias vezes à mãe que o denunciasse ou que fôssemos as duas embora, mas ela dizia sempre que isso não ia acontecer porque ele era o seu marido e o meu pai e, se nos batia, não fazia por mal. Ela acreditava mesmo que ele não fazia por mal, ela acreditava mesmo que aquilo era amor! E quando os médicos lhe perguntaram o que é que tinha acontecido, ela mentiu descaradamente dizendo que tinha caído nas escadas do nosso prédio. E nós nem sequer moramos num prédio!

Ela ficou internada, em observação, durante mais ou menos uma semana. Depois disso, teve alta e os médicos recomendaram que ela ficasse em repouso absoluto durante mais algum tempo. E essas foram as semanas mais difíceis e frustrantes da minha vida. No dia em que ela teve alta, uma enfermeira simpática veio ter comigo.

- Olá querida, como te chamas? - perguntou ela.

- Nádia.

- Que lindo nome! Eu chamo-me Luz.

- Luz também é um nome bonito.

- Achas? - eu disse que sim com a cabeça. - Bem, querida, eu vim dizer-te que tu não estás sozinha neste barco. O meu pai também batia na minha mãe... E em mim... - Como é que ela sabia a verdade? Eu estava a começar a ficar desconfortável e as lágrimas ameaçaram cair. - Está tudo bem, Nádia. Mas tens de ser forte, por ti e pela tua mãe, sim? Mais tarde ou mais cedo, o pesadelo vai acabar.

Durante muito tempo, as palavras da enfermeira Luz ecoaram na minha cabeça. Durante muito tempo, a minha fé na mudança foi tão, mas tão forte, que depois, quando o inferno voltou a invadir a minha vida, não consegui aceitar e tive mesmo de consultar um psicólogo.  

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