Outubro 2007
As visitas ao hospital tornaram-se mais regulares. Todas as semanas, a minha mãe marcava presença nas urgências. Apesar de as pessoas entenderem tudo o que se passava, ela continuava a arranjar desculpas e a agir como se estivesse tudo bem. Mas não estava tudo bem, nem ia ficar! E eu só temia pelo pior... Porque, se o pior acontecesse, eu ficaria sem ninguém. A única pessoa que me poderia ajudar era a Raquel. A Raquel era o meu anjo da guarda.
Este inferno da violência doméstica durava há demasiado tempo. A minha mãe tornou-se uma pessoa frágil e vivia constantemente com medo. Tremia cada vez que o meu pai saía ou entrava em casa e batia com a porta da frente. Ela só ficava tranquila quando ele não estava por perto. Eu notava também que ela estava a envelhecer muito depressa... O facto de ter emagrecido bastante e muito de repente, e ter a cara cada vez mais marcada com cicatrizes e rugas, fazia parecer que ela era mais velha. Eu temia pela vida da minha mãe. Eu tinha medo que esta história tivesse um desfecho trágico. Também não conseguia perceber o que se passava na cabeça do meu pai. A minha mãe não conseguia ter mais filhos, isso era óbvio! Foi um milagre eu ter nascido, pelo que sei. Já passa da hora de ele se mentalizar e aceitar que eu serei filha única! Porque a violência e os gritos não resolvem nada! E a minha mente não vai conseguir lidar com isto durante muito mais tempo!
Certo dia, eu estava em casa sozinha com a minha mãe, quando ela me chamou:
- Nádia, vai fazer as tuas malas. Eu já as fui buscar ao sótão, estão no teu quarto. Vá, despacha-te! - fiquei petrificada.
- Onde vamos, mãe? Não estou a perceber.
- Querida, nós vamos embora daqui. Precisamos de recomeçar a nossa vida fora daqui e longe do teu pai! Por isso tens de te despachar! Temos de partir antes dele chegar a casa.
O meu coração encheu-se de alegria e de esperança! Tudo o que eu desejei nos últimos tempos foi isso, sair daqui e começar uma vida nova! Em menos de nada, as malas estavam prontas e nós estávamos preparadas para começar um novo capítulo.
- Querida, quero que saibas uma coisa, antes de eu abrir esta porta. Se alguma coisa correr mal, peço-te que ligues para o 112 sem hesitar e lhes dês a nossa morada. Eles vão ajudar-te. E lembra-te de que a mãe te ama muito. Nunca te esqueças disso! Faz o que te peço, por favor!
As palavras da minha mãe fizeram-me despertar e perceber que continuava a existir o risco de o meu pai nos apanhar em flagrante. E isso assustava-me. Prometi que, caso os nossos planos corressem mal, ligaria imediatamente para o 112. Não sei se chegariam a tempo de salvar a minha mãe, mas faria os possíveis para me conseguir salvar a mim própria. Em lágrimas, abraçámo-nos, um último abraço que iria ser o ponto final da fase mais complicada da minha vida.
No momento em que ela abriu a porta, o meu pai estava do outro lado e os seus olhos estavam vermelhos, enraivecidos.
- Onde é que vocês pensam que vão!? Para onde é que tu pensas que vais levar a minha filha? Reponde, Amélia! - o meu pai estava fora de si - Nádia, para o teu quarto, agora! Eu e a tua mãe precisamos de ter uma conversa muito séria! - eu vi a morte nos olhos do meu pai, vi que o fim estava próximo, por isso fiz o que ele me mandou.
Fui para o meu quarto e, como prometido, liguei para o 112 e dei-lhes todas as indicações, tentando estar o mais calma possível. Eles atenderam, ouviram-me e compreenderam. Iriam ajudar-me. Mas enquanto a ajuda não chegou, ouvi o meu pai gritar, vi-o fulminar a minha mãe com o olhar, senti todos os pontapés e todos os murros que invadiram e destruíram o corpo da minha mãe. Senti aquele ataque, aquele último ataque, de uma forma indescritível. O meu pai fez questão de destruir a minha vida e a vida da minha mãe. Matou-a e matou um pouco do meu ser. Mas não iria ficar impune! Eu iria fazer justiça pela minha mãe e por todas as mulheres que são mortas às mãos dos seus companheiros! Só precisava que a polícia chegasse e me ajudasse a pôr o meu pai atrás das grades.
Quinze minutos depois, comecei finalmente a ouvir as sirenes da polícia e dos bombeiros. Foram os quinze minutos mais longos da minha vida. Quando me senti segura, saí do quarto e dirigi-me à sala. O meu pai estava deitado no chão, a abraçar a minha mãe, que jazia inconsciente e rodeada de uma poça de sangue. Ela morreu para me salvar. Ela morreu a saber que eu ia ficar em segurança. A polícia estava a chegar. Arrombaria a porta, prenderia o meu pai e provavelmente levar-me-ia para um abrigo de crianças com pais criminosos. E eu não queria que isso acontecesse, e sabia que esse também não era o desejo da minha mãe. Por isso fugi. Saí pela porta das traseiras, tendo cuidado para não ser vista, e corri o mais rápido que consegui. Quando já estava relativamente longe e me sentia segura, liguei à Raquel:
- Madrinha?
- Nádia, querida, o que se passa? - as lágrimas começaram a ameaçar cair e eu tentava manter a calma.
- O pai... O pai matou a mãe... Eu chamei a polícia... Eles estão lá em casa... Mas eu fugi... - a ansiedade tomava conta de mim.
- Oh meu Deus... Querida... Fugiste? Onde estás?
- Eu não sei... Eu não sei... Mas vem buscar-me, por favor...!
- Eu vou buscar-te! Tu vais ficar em segurança! Não saias de onde estás! Preciso que me ajudes a perceber como chegar a ti! Vais ficar bem! Nunca mais ninguém te fará mal! Prometo!
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Recomeçar
RomanceNádia tinha treze anos quando viu o seu pai assassinar a sua mãe. A violência doméstica durava há demasiado tempo naquela casa, e a morte de Amélia foi o culminar daquela vida e daquela família. Marco tinha catorze anos quando testemunhou a detenç...