Parte 1 - Marco

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Abril 2010

Dois anos. Em dois anos, a minha vida mudou de uma forma inacreditável. Do meu humilde apartamento num bairro de Lisboa, passei por várias instituições da segurança social e agora estou numa "requintada" casa de dois andares, algures na cidade invicta. Tal como eu previa, a Isabel e o Henrique, os meus tutores, são ricos e vivem uma vida despreocupada, uma vida que não é para mim. Eu não cumpro as regras que eles impõem e isso simplesmente deixa-os loucos. Já me chamaram de mal-educado, pobrezinho, revoltado, desenvergonhado e mais uns quantos nomes. Já me levaram a dez psicólogos diferentes, mas eu recuso-me a falar. Já me mudaram de escola umas duas ou três vezes também, até que desistiram. Disseram que me ajudavam a encontrar o meu irmão, mas nunca se deram ao trabalho de fazer nada. Não se esforçam por me entender nem por me ouvir. Dizem que se preocupam comigo, mas eu sei que isso não é verdade, e a Íris também.

A Íris é a filha deles. Tem a idade do meu irmão e uma inteligência e perspicácia invejáveis. Passo bastante tempo com ela e sinto que, de certa forma, criámos uma relação bastante interessante. Às vezes, deita-se ao meu lado, na cama, e pede-me que fale do Miguel, diz que me quer ajudar a encontrá-lo, mas não há nada que ela possa fazer.

- Nunca digas a uma mulher o que ela pode ou não fazer - desafia ela, e eu desato a rir à gargalhada - De que te estás a rir!?

- Tu não és uma mulher! Ainda és uma criança!

- Ora essa! Claro que sou uma mulher! Só que ainda estou em desenvolvimento! E vou mudar o mundo e ainda me vais agradecer! - Já lhe agradeço todos os dias, por fazer estes dois anos valerem a pena – Marco, os meus pais não te percebem, mas eu percebo.

- Eu sei que sim, pequenina. - Ela faz-me tanto lembrar o Miguel!

Tenho pena da Íris por ter uns pais tão protetores e rígidos.... Tenho pena que ela não tenha a minha idade.... Vou ter pena de a deixar quando me puser a andar e sair desta casa, quando for finalmente livre, mas sei que manteremos contacto. Temos o número um do outro, estaremos à distância de uma chamada.

Amanhã, começa o terceiro período escolar. Eu estou a meio do décimo ano, mas na verdade deveria estar a meio do décimo primeiro. Repeti o nono ano por faltas, e não me orgulho disso. Nessa altura, a escola era o último sítio onde queria estar. Prometi a mim mesmo que isso ia mudar. Estou numa escola onde estudam alunos do quinto ao décimo segundo ano, ou seja, existe muita gente no mesmo sítio ao mesmo tempo. Tenho tentado comportar-me, mas os professores parecem não me dar tréguas e implicam comigo por tudo e por nada. A Isabel e o Henrique já ameaçaram enviar-me para um colégio interno, onde as coisas devem seguir as regras de uma prisão, por isso tenho de fazer um esforço e ser civilizado.

Algo que me incomodou o período passado foi ser observado, nos intervalos, por uma rapariga do curso de artes. Sei que é de artes porque anda sempre com telas e cavaletes atrás. Consigo perceber também que gosta muito de se vestir com gangas.... Só não percebo o que quererá de mim.


Maio 2010

Estava a começar a ficar incomodado... Ela continua a observar-me e eu estou a começar a ficar louco com isso! Se pelo menos o fizesse discretamente... Mas não é o caso. Será que está a ganhar coragem para falar comigo? Não... Se assim fosse, já o teria feito. Desde que me mudei para esta escola que ela me observa... E eu também faço o mesmo, não vou negar, embora seja só às vezes... Noto também que não tem muitos amigos, anda sempre com um rapaz, que frequenta o mesmo curso, e fala também com mais três ou quatro raparigas. Parece-me muito inocente... Mas já chega, vou chegar-me à frente e falar com ela, perceber porque me observa tanto.... Será que está interessada em mim? Hmm... Não me parece.... Vou esperar, quero apanhá-la sozinha, quero ouvir o que ela tem a dizer.

Chegou o momento. Vou aproveitar que ela está sozinha e aproximar-me.

- Olá! - digo eu, ao chegar perto dela. Sento-me ao seu lado e noto que fica incomodada, definitivamente não gosta de mim. - Como te chamas? - ela hesita um pouco antes de responder, olho para ela e ela evita o meu olhar e olha em frente.

- Nádia. - diz finalmente.

Tem um nome bonito, combina com o seu estilo, mas algo me diz que tem uma personalidade muito frágil para um nome tão pesado.

- Nádia. - Repito e o seu corpo estremece. - Ei, não tenhas medo, eu não te vou fazer mal. Só quero saber porque é que me andas a observar há meses? Tens alguma coisa para me dizer?

- Eu.... Eu....

Ela fica claramente atrapalhada e levanta-se. Nesse momento, o seu amigo aproxima-se e nota na sua cara uma certa aflição. Mas não entendo porque é que ela está assim, nem sequer lhe toquei!

- Ei, tu! - grita ele para mim – O que é que lhe fizeste!?

- Eu? Eu não lhe fiz nada! – respondo.

- Nádia! O que é que ele te fez? - pergunta-lhe.

- Nada.... Ele.... Não....

Começa a ficar mais nervosa ainda e atrapalha-se a dizer as palavras. Consigo prever o que vai acontecer a seguir.

- O que é que tu lhe fizeste!? Porque é que ela está neste estado!? - começa ele a gritar. Como vê que eu não respondo, começa a atacar-me ainda mais – Os drogados dos teus pais não te deram educação?

Cerrei os punhos. Se ele sabe do meu passado, ela também sabe, por isso ficou tão perturbada.

- Eu não lhe fiz nada! Nem sequer lhe toquei! Já disse! - respondi eu e foi nesse momento que a bomba rebentou.

- Mentiroso! - e nesse momento, o meu olho direito começou a ver desfocado, ele tinha -me dado um murro.

Curvei-me porque a dor era insuportável, não estava em condições de me defender. Deixei que ele me humilhasse, me espancasse, me deitasse ao chão. Apenas conseguia ouvir os seus insultos e os gritos desesperados da Nádia.

- Fred! Fred! Para com isso! Deixa-o em paz! Ele não me fez nada! Ele nem sequer me tocou! - gritava ela, entre lágrimas - Frederico! Se te importas com a nossa amizade, para! Ele não me fez nada, porra! - gritava ela, desesperada e provavelmente com o coração a transbordar de culpa.

Ele parou e, nesse momento, aproximou-se uma auxiliar.

- Frederico! Acompanha-me imediatamente ao conselho diretivo! E, Nádia, acompanha o Marco à enfermaria, por favor!

Ele foi com a auxiliar e a Nádia aproximou-se de mim e perguntou:

- Estás bem?

- Estou vivo - respondi eu, ela sorriu.

- Bem, isso já é um começo. Vem, vamos tratar dessas feridas.

Com cuidado e devagar, ajudou-me a levantar e acompanhou-me à enfermaria. Fiquei rendido ao seu sorriso e à sua gentileza, nunca ninguém tinha feito nada assim por mim!

Mas, depois desse dia, nunca mais a voltei a ver.  

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