Setembro 2007
Oito anos. Há oito anos que o cheiro a droga inunda a minha casa. Quem não sabe, não dá conta, mas eu consigo senti-lo. É quase indetetável, mas está lá. Há oito anos estava tudo bem, mas agora está tudo errado na minha vida. Fiquei sem a minha mãe e sem o meu pai, eles dedicam a sua atenção e os seus dias àquele pó branco, aparentemente inofensivo, mas que é capaz de destruir vidas. Fiquei só eu e o meu irmão. Ele não tem noção disso, mas é o meu herói. Foi ele que me fez acreditar e ter esperança no futuro. É por ele que eu ainda continuo aqui. Continuarei a cuidar dele até este pesadelo acabar.
Durante muitos anos, acredito que nunca ninguém desconfiou daquilo que se passava na minha casa. Mas, de há um tempo para cá, desconfio que na minha rua corram boatos infelizes sobre os meus pais. Isso, eu não conseguirei suportar. Eu suporto e não me importo de viver rodeado de quilos de droga, mas saber que isso se tornou tema de conversa entre os vizinhos, custa-me. Porque, independentemente de tudo, eu amo a minha família e não iria aguentar ficar sem ela.
A poucas semanas do regresso às aulas, a campainha tocou. Eu estava em casa com o Miguel e, como ele não estava autorizado a abrir a porta, eu fui abrir. Do outro lado, não estava ninguém, apenas uma caixa de cartão com o meu nome e o meu endereço. Trouxe-a para dentro, fechei a porta, pousei a encomenda na mesa de jantar e observei-a durante uns instantes.
- Quem era? - perguntou o Miguel, aproximando-se.
- Ninguém – respondi.
- O que é isso?
- Não sei.
- É para ti? É um presente?
- Parece que sim, mas não sei quem enviou.
- Vais abrir?
- Achas que deva? - ele encolheu os ombros – E se for uma bomba?
- Ela vai explodir de qualquer forma. - Fiquei impressionado, não tinha noção de que ele era tão inteligente - Vá, mexe-te, abre isso.
- Tens razão, mas preciso de uma tesoura. Vai buscar, se fazes favor.
Ele não se demorou e ficou muito atento, ao meu lado, a ver-me abrir a caixa. Dentro dela, havia milhares de bolinhas de esferovite. Vasculhei o interior da caixa e descobri, bem lá no fundo, uma carta. Somente uma carta dentro de um delicado envelope branco. Muito lentamente, abri e li o que dizia:
"No dia a seguir ao que estás a ler esta carta, alguém vai denunciar os teus pais. Apenas um telefonema será suficiente para que recebam uma visita da polícia. Eles vão descobrir tudo e a tua vida vai mudar para sempre"
Uma ameaça. Um telefonema. Amanhã. Não. Isto não podia estar a acontecer. Eu sabia que o fim estava próximo, mas não imaginei que fosse tão cedo. Tenho medo, pela primeira vez tenho medo do que possa acontecer.
- O que diz? - estava tão absorto nos meus pensamentos que nem me lembrei que o Miguel estava comigo – Marco? O que diz a carta?
- Nada, não é nada de especial... - tentei desviar a conversa, mas ele não cedeu.
- Alguma coisa tem de ser, devias ter visto a tua cara! O que se passa?
- Miguel, vai jogar. Agora. Está tudo bem, não te preocupes.
- De verdade?
- Sim, confia no mano.
Setembro 2007
A minha vida estava à beira do fim e eu podia senti-lo. Nunca pensei que este dia chegasse nem que as drogas fizessem parte da minha vida durante tanto tempo. Sabia que tinham ajudado a minha mãe a atenuar a dor que a depressão lhe causou, mas estava longe de imaginar que as coisas chegariam ao ponto onde estão. Ontem, ao fim de oito anos, alguém me fez ficar com medo, alguém me fez entender que toda a gente ia ficar a saber, toda a gente ia comentar que os meus pais eram uns drogados.
Mas eu não podia pensar nisso. Dentro de dias, começaria um novo ano letivo. Eu iria para o oitavo ano e teria de me focar nos meus estudos e esquecer que a minha vida estava à beira da ruína. Os meus pais estavam em casa, por isso eu fiquei um pouco mais aliviado. Eles podiam tomar conta do Miguel, enquanto eu começava a fazer uma lista daquilo que ia precisar. Peguei nos fones, numa folha de papel e num lápis e comecei a enumerar tudo.
Até que bateram à porta e o meu coração parou. Levantei-me e fui espreitar. Seis polícias estavam do outro lado da porta e mostraram à minha mãe uma declaração. A denúncia. O mandado de busca. Alguém tinha feito a denúncia que eu li na carta e agora eles estavam lá para procurarem e encontrarem quilos e quilos de droga. E os meus pais iam ser presos e condenados, sabe Deus por quanto tempo.
Foi isso mesmo que aconteceu. Foi tudo muito rápido. Eu permaneci quieto, anestesiado e fiz tudo aquilo que me mandaram. Ouvi a minha mãe a gritar, o meu pai a tentar bater à polícia e o meu irmão a chorar e a chamar por mim. Mas eu não podia fazer nada por ele. Apenas rezei para que ninguém lhe fizesse mal. Não fazia ideia se o voltaria a ver ou se ficaria no mesmo abrigo que eu.... Só queria que ele ficasse bem e se lembrasse que tinha um irmão que o amava e que fez tudo o que pôde para o proteger.

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Recomeçar
RomantizmNádia tinha treze anos quando viu o seu pai assassinar a sua mãe. A violência doméstica durava há demasiado tempo naquela casa, e a morte de Amélia foi o culminar daquela vida e daquela família. Marco tinha catorze anos quando testemunhou a detenç...