Epílogo - Distante do lar

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Rubi

A paisagem mudava rápido. Estava a quase um dia ali, não sabia quanto tempo mais teria. Seu corpo físico sentia o desconforto, mas não conseguiria se locomover às cegas naquele estado. Escondia-se em um tronco oco de uma grande árvore oculta, com algumas provisões que poderia tatear para se alimentar, mas mesmo com o jejum não tinha fome. 

Tinha medo que a descobrissem, rezava aos deuses que ao menos tivesse tempo de contar.

Seus olhos eram cegos ao seu arredor, e ainda assim viam florestas correntes se tornando descampados, as árvores se tornando mais escassas, montanhas surgindo e partindo. Seus olhos invisíveis em meio as asas de luz chegaram ao litoral, contornando a infinita barreira, e depois ao mar, que agora lhe era infinito.

Sempre mentira sobre suas reais capacidades. Podia projetar sua visão aérea e fazê-la voar a uma velocidade muito mais rápida que qualquer ave real ou lendária poderia, e muito mais longe, mas nenhum dos atuais servos de Lúmerus teria como saber disso. Podia mesmo fazer a visão chegar a Bravius, ainda assim era a menor das mentiras que tivera de contar.

Não havia conseguido se comunicar direito com sua rainha desde que ela própria se dirigira ao nordeste humano. Precisava de tempo e concentração, mas estava sempre sendo requisitada ou observada nas forças de Judhak. 

Havia falhado. As lágrimas escorriam em seus raros olhos, sem interferirem na visão que tinha agora, salgando-lhe um sorriso inconformado no rosto. As recordações tão presentes.

Seu nascimento fora considerado uma benção por alguns, mas teria considerado uma maldição se sua vida não tivesse cruzado Donovan e Miríade. Nascera no Distrito dos Bordéis, com os cobiçados olhos rosados e os chifres sem dobras, virados para trás. Uma combinação rara. Tão rara que qualquer fêmea nascida em Bravius ou capturada nos outros feudos, que os possuísse, era considerada uma Súcubus, uma oferenda divina que deveria ser entregue como escrava-concubina do atual Rei-Juíz.

Por conta de seus olhos, seu nome original fora Rubi.

Na época, Miríade já estava por ali. Tornaria-se sua madrinha a convite da mãe, uma tradição entre as prostitutas.  A madrinha ainda mal engatinhava a ser a força revolucionária que se moveria pelo submundo, mas já queria mudar as coisas. Não deixou que a levassem. Arranjaram-lhe uma nova identidade, vestiram na com roupas masculinas, um macho ínamo também podia ter tais características sem que isso fosse algo demais. Então passou a viver como Rúben.

Não se importava com a identidade masculina. Podia lutar, aprender magia e a se defender. E não seria propriedade de ninguém, como suas "irmãs" que não tinham a mesma sorte. Era o bastante para si.

No entanto crescera, e a noção de que tivera muita sorte a perseguiu, e a fez se tornar um espião. Via a sorte de quem nascera como ela, via a sorte da maioria dos ínamos, então decidiu que ajudaria Miríade a derrubar o Rei-Júiz.

Não havia sido fácil, mas Donovan estivera ali com ela desde o começo. Ele lhe ensinara tudo, o admirava e amava por isso. Durante muito tempo, antes que só ela acabasse partindo com o rei ao mundo humano, foram os dois os únicos espiões e cumplices na corte de Lúmerus. 

Falhara com ele. 

Ficara sabendo junto de todos da aproximação, ainda tentara guiá-los para longe de Donovan, os atraindo para onde estavam os outros inimigos, para que ao menos ele partisse. Ainda assim o príncipe Judhak o perseguira. Vira quando o matara.

Donovan. Por que não teve coragem?

Suas asas chegavam ao litoral ensolarado, o clima sobrenaturalmente radiante e límpido lhe era esperado. Seguiu a areia muito branca, passou pelo vilarejo de casas bonitas, com redes nas varandas e árvores frutíferas nos quintais, uma série de plantações e por uma praça onde um grupo fazia um tipo de reunião ou festividade em roda. Não conseguia ouvir sons nesse estado.

Avançou e chegou a grande pedra à beira-mar, o local combinado. Algum servo sempre devia estar por ali, para o caso de que enviasse alguma mensagem. Mas admirou-se ao ver a própria rainha por lá! Será que ia ali com frequência?

Sentiu a garganta enganchar, como se fosse usar a voz para falar com ela, mas não era assim que sua habilidade funcionava. A mensagem partia dela ao conjurar as asas, o pensamento do momento, e era entregue exatamente igual quando um receptor tinha a fronte tocada por elas. 

A rainha vestia-se mais modestamente, a moda local. Um vestido leve branco cobria a parte de baixo do corpo descalço, enquanto uma faixa de tecido amarelo cobria-lhe os seios. Um véu azul claro como o céu cobria-lhe a nuca após os chifres. Usava colares e adereços de pedras raras, mas o bonito ventre estava de fora. Passava a mão carinhosamente sobre ele, conversando algo e se detendo, ao ver as asas chegarem.

Estava surpresa. A madrinha sempre duvidara que poderia conceber, dado suas peculiaridades, e no entanto um milagre estava ali, sendo gerado em seu ser. Começou a chorar, queria poder mudar a mensagem que enviara, mas o pensamento na hora fora desorganizado e caótico, queria ter dito que sentia muito, que a acharia e que cuidaria dela.

Pensou em recuar e desistir, talvez procurar outro pra entregar a mensagem, mas cada minuto desperdiçado era um risco. Só o que pôde fazer foi acariciar-lhe a testa suavemente ao pousar.

"Ele morreu. O príncipe Judhak o perfurara em batalha" fora o que pensara ao enviar. A visão estava viva em seu pensamento na hora, e agora o estaria no da rainha. 

Ficou nervosa, sentia a umidade nos olhos e no corpo físico, a ansiedade sua inimiga, mas não podia perder a concentração. Precisava trazer as asas de volta até si, só quando as tocasse poderia saber o pensamento da rainha.  

Bateu asas, mas logo perdeu a visão de tudo, sendo pega e arrastada violentamente por algo. Tentou controlar as asas em vão, um turbilhão rompendo a conexão mágica. A última visão que tivera, antes de enxergar o nada do escuro tronco ao redor de si mesma, foi a de ser engolida pelo assustador tornado que se formava.

***


Muito obrigado por ler! Cicatrizes da Magia continua...

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