Gháli
O corredor subterrâneo, sujo e escuro, fazia Gháli se sentir como se não estivesse mais na mítica Catedral Lunar da Fé, um lugar escuro de cheiro embolorado.
Sua entrada se dava dentro da sala privada dos cardeais, um local de aceso apenas dos religiosos e algum eventual convidado, através de um alçapão escondido embaixo da grossa e secular tapeçaria verde com fios dourados que fora presenteada pelo último dos antigos Reis Sem Dons.
Ao fim da cerimônia, após cumprimentar a todos, e ao discurso externo, pediu licença a nova imperatriz, e disse que ia resolver um pequenos problema, algo rápido. Seguiu junto com três de seus homens de confiança.
Reparou que conseguiu descer as escadas com facilidade e sem sentir-se cansado. Tinha a impressão de que sua saúde sempre melhorava longe da Fortaleza Carmesim. Desconfiava da causa, mas não queria admitir.
O final do corredor dava em um antigo calabouço de pedras cinza esverdeadas de musgo, onde, décadas atrás, já no império do Bisavô, sacerdotes torturavam praticantes de outas religiões e descrentes da Fé do Sol e da Lua. Ironicamente a neta e última descendente daqueles reis teria sido um dos torturados ali.
Uma rajada de ar frio feriu-lhe as maçãs do rosto conforme chegaram ao final das escadas.
No calabouço circular, uma enorme gaiola de dois metros coberta de gelo e suspensa a um metro e meio do chão por uma grossa corrente continha algo inusitado.
A criatura na gaiola poderia ser confundida com um humano idoso, de pele clara e cabelos loiros curtos e desgrenhados, mas um olhar aproximado permitia ver que seus olhos eram alaranjados, de pupilas negras em fenda, como um gato.
A criatura, ao vê-lo, colocou as grandes mãos nas barras da gaiola, as compridas unhas azuladas do frio, e disse algo baixo, a voz dificultosa em sair provavelmente devido ao frio, sua língua algo demoníaco e ancestral. Pequenos chifres congelados, torcidos e apontados para frente, terminavam de compor a composição familiar e ao mesmo tempo assombrosa.
Ao lado da gaiola, um Ilírio com uma veste verde leve, de corpo inteiro e presa na cintura por uma faixa branca, mantinha uma expressão interessada observando Zênio em seu grosso casaco de lã cinza, tentando se comunicar com a criatura. O nariz claro e pontudo do segundo, com uma cuidada barba escura em baixo, mantinha-se apontado para o ser.
O sábio se virou, com sua chegada, abaixando a cabeça em reverência ao seu Imperador, então o curvado mas forte magíster o imitou, seus olhos azuis acinzentados, com expressivas linhas ao redor, muito claros e potentes se abaixando em reverência também. Ilírio fechou o punho durante a reverência, e o clima gélido do local se amenizou.
- Senhores.
- Amado Imperador - respondeu o magíster.
- Parece que a pequena distração enviada aos ínamos rendeu frutos, é sempre impressionante ver um deles de perto, não é? - disse o mestre da moeda.
- Não que seja a primeira vez que você tem contato com um deles, não é mesmo? - respondeu a seu sábio.
- O que dizer? Nosso grade Imperador Gháli pode mesmo ler a minha mente - disse Zênio, deixando Ghali desconcertado por um instante.
Será que sabia? Não era possível, seu dom era um segredo muito bem guardado. Fez-se um silêncio por um instante, no qual se concentrou nos pensamentos do sábio.
"Espero que as informações que consegui sejam o suficiente para ele não arrancar minha cabeça" - foi o que leu na mente de Zênio. No entanto havia quase um humor ali. A mente de alguém que não necessariamente tinha medo de morrer. Não houve pensamento referente a saber o seu segredo.
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Cicatrizes da Magia - Memórias de Outrem
FantasyE se a queda do mundo houvesse criado uma era medieval mágica, onde existe um império repleto de elementos brasileiros? E se nesse mundo o dom da magia se revelasse muito mais como uma árdua provação do que uma benção? No Império de Cerne, pessoas p...