Prólogo - A menina que desejou apagar tudo

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Vívi

- Acorde, Vívi. É tempo já! - disse a voz, cochichando, porém impaciente.

Abriu os olhos e viu Selan, sua sobrinha, que tinha em torno de oito anos, assim como ela.

Ainda sem levantar-se da esteira de palha comprida, Vívi espiou com o único olho aberto seu arredor, o sono custando a ceder.

Sonolenta, olhou a cara zangada da sobrinha, então virou o rosto para a rede onde a irmã mais velha, Consolação, ressonava cansada da noite anterior, na casa de barro quase sem mobília. Abriu o outro olho e viu ainda o teto de palha acima, com um leve mosquiteiro de forro, que visava impedir insetos e alguma cobra de cair sobre eles durante o sono.

A barriga cochando de fome finalmente a despertou. Ignorou a sensação, que Consolação mal andava conseguindo prover uma refeição por dia para cada um, sendo puxada pelo braço por Selan, em direção a luz cegante que vinha de fora.

A claridade magoou seus olhos. Os muitos sobrinhos e irmãos, todos crianças, as aguardavam à sombra dos dois velhos cajueiros do quintal, única sombra sobre aquela terra rachada e vermelha. A primeira obrigação de todas as manhãs por ali era buscar água. Mesmo ainda cedo, o calor imperava, e não à toa aquelas eram chamadas as Terras Quentes.

Ficou sem jeito de ser a última a aparecer, contou as crianças, os sete irmãos e os cinco sobrinhos, filhos de Consolação, na esperança de outro atrasado. Estavam todos ali.

Deveriam ser seis da Consolação, lembrou por um momento, mas Tino, um dos meninos, fora levado. 

Ele tinha os "Dons Mágicos". Mais tarde ficariam sabendo que o garoto morrera de Brasa, uma doença que não tinham por ali. Às vezes sonhava com ele.

O destino era longe, mas a ida, com as cabaças ainda vazias, era sempre mais fácil. Foram brincando de Leal e Ego, os leais tentando capturar os egos bandidos para o Imperador, enquanto eles fugiam e atiravam suas magias malignas (mamonas encontradas na estrada) para os impedir.

Quando chegaram aos açudes, estes pareciam ter mais barro que água, aquela seca não seria fácil. No começo fora bom, porque os peixes ficavam isolados na poça e dava para pegar com a mão, mas agora nem peixe vivo havia mais. Mesmo assim o calor era tanto que todos pularam na água, que depois iam levar para casa e usar para beber.

Estavam ela e Selan frente a frente, em um açude separado dos demais, quando reparou que a garota estava muito calada e vaga.

- Oxe, que diabo se passa com você Selan, tá de burro amarrado é?! Geralmente você parece uma maritaca, hoje tá quieta, emburrada, e...

Interrompeu-se. Viu nos olhos da sobrinha, sua melhor amiga entre sobrinhos e irmãos, que algo muito errado acontecia: eram olhos de medo. Pareceu o olhar que viu na própria Consolação quando ouviu os homens atrás da porta pra buscar Tino, agarrou nas perninhas dele e tiveram que bater muito nela até ela soltar.

- Mas o que houve?

Selan olhou pra ela como quem diz para se aproximar, ambas agacharam. Um silêncio se fez entre elas, apenas a voz das outras crianças ao longe.

Selan tocou a água com o dedo indicador, e uma estranha luz, cor de jerimum, surgiu em seu dedo, então Vívi viu abismada a sobrinha desenhar um triângulo acima de sua superfície, como se o ar fosse terra que se riscasse.

Magia!

Aquilo era lindo, Vívi ficou em choque, mas não teve tempo para ficar assim muito tempo. Pulou violentamente sobre o desenho, espalhando água e lama entre elas, uma sensação de aperto no peito, então o desenho sumiu. Agarrou a outra garota com tanta força que Selan fechou os olhos, com medo de apanhar.

- Você nunca mais faça isso! Entendeste?! Não pode fazer isso!!! - disse entre dentes, cravando os dedos nos braços finos da sobrinha. Só se deu conta quando a outra gemeu, largando-a de súbito.

Uma das crianças, em uma poça mais afastada, começou a chorar. Será que viu alguma coisa? A sobrinha começou a lacrimejar também, mas conteve-se a um olhar duro dela.

Sabia que quando Mãe morreu, haviam pedido as crianças mais bonitinhas a Consolação pra criarem. Não haviam pedido ela, mas a irmã não deu nenhum dos outros também. Sempre fora bonita, podia ter arranjado um homem só para ela sem tantas bocas, como ela dizia, mas ela nos escolheu. Levaram Tino, mas não foi ela quem quis.

Haviam lutado muito para ficarem todos juntos, mas que diabos Selan estava pensando?!

- Esse vai ser nosso segredo, tudo bem? Não pode contar pra ninguém, tá bom?

A sobrinha fez que sim. A abraçou com toda força.

***


Olá leitores, muito obrigado por ler. Espero que tenham gostado desse Prólogo, que se passa alguns anos antes das histórias a seguir.

No próximo capítulo, hora de conhecer outro dos heróis da nossa história ... tentando invadir e roubar um certo forte. Bom, talvez ele não seja tão heroico assim...

Próximo capítulo: Asas de fogo - Portões para a aventura.

Cicatrizes da Magia - Memórias de OutremOnde histórias criam vida. Descubra agora