Contra as ondas - Se afogar

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Miríade

Usava um vestido branco com um casaco cor de areia comprido, que esvoaçava com o vento salgado e forte do fim da tarde. Muitos soldados a pé haviam escoltado a sua carruagem até o cais de Bravius, no entanto, pela primeira vez desde que assomaram ao poder, não houve confusão ou pessoas na multidão atirando coisas ao seu veículo.

Estão contentes ao me ver partir, conclui Miríade, ao descer a costa, vendo que, igualmente, o porto encontrava-se em relativa paz e sem alvoroço.

- Que frio cortante, mesmo sob o sol! - disse aos seus quatro que a seguiam, que concordaram com a cabeça - Há quanto tempo eu não venho aqui...

- Bastante, apesar do sol Bonito, senhora Miríade - disse Neline, uma de seus guardas. No reinado de Lúmerus, fêmeas não podiam ser soldadas ou guardas, mas agora algumas de suas aliadas treinadas na clandestinidade, como ela, faziam parte de sua guarda. Ao menos havia conseguido transformações ali, apesar de tudo.

Apesar de todos que deixei morrer. Terá sido justo com eles?

- Está muito bonito sim - teve de concordar, o dia claro e sem neblina tornava a paisagem muito bonita. Ainda assim era estranho. Esperava se sentir mais saudosa daquele lugar com a eminente partida. Será que também estou um pouco contente por partir?

Donovan a aguardava em um mirante semicircular feito de pedras amarelo-rosadas, próximo a areia. Seus olhos pretos e úmidos denunciavam certo incomodo que o sorriso largo, de caninos brancos e aparentes, tentava disfarçar. Podia enganar facilmente a outros, mas já se conheciam há anos. Ele estava sofrendo.

Ao se aproximar dele, pediu que seus quatro guardas pessoais, todos antigos conhecidos de rebelião, lhes dessem privacidade, ao que Donovan pediu o mesmo aos dois que o acompanhavam.

- Minha Senhora, devo dizer que jamais a vi tão linda quanto nesse por do sol! - cumprimentou seu amado e igual, com aquela velha cortesia de vassalagem, como se ela fosse senhora de seu coração.

- Poderia dizer o mesmo de você, acho que nunca o vi tão garboso - Donovan usava um gibão grosso azul, com detalhes e bordados em dourado. No peito, a nova insígnia de Bravius, surgida de uma ideia dada por ela: uma Fênix saindo das chamas.

- Sabe que mente, não sabe? - riu.

Usava também botas negras e escuras, como seus chifres, calças largas, e uma blusa de lã escura por baixo do gibão. Eram de fato roupas relativamente simples, como usualmente preferia se vestir, mas qualquer coisa nele o deixava lindo. Fica mais lindo ainda sem nada, se permitiu brincar mentalmente, lembrando dos músculos que ele tinha debaixo daquela roupa toda.

Algo em seu olhar preocupado a fazia querer abraça-lo e não soltar nunca mais. Ficaram um instante em silêncio e começaram a olhar a praia e o sol vermelho-laranja acima dela, que iria se pôr em algumas horas. O céu, marinho e sangue ao mesmo tempo, estava magnífico. Contrastante. Estavam a menos de um metro de distância um do outro, mas não se tocaram.

- Sabe, não é exatamente o melhor horário para partir. Você deveria considerar partir durante o dia - disse Donovan, por fim cortando o silêncio.

- Sabe que nenhum horário será o melhor horário para partir, certo? Se eu aceitasse, amanhã você pensaria em outra desculpa pra que eu não vá. E outra diferente depois de amanhã.

- E não seria esse o objetivo? Não pode me culpar por tentar - disse ele, dessa vez sorrindo sem mostrar os dentes.

- Essa praia me traz muitas recordações - disse , sem saber ao certo porque sentiu vontade de falar daquilo dessa vez, mas sentiu que devia algum tipo de explicação - Foi aqui... nesse mar onde me lancei da vez em que quis desistir de tudo. É um lugar de recomeços.

Cicatrizes da Magia - Memórias de OutremOnde histórias criam vida. Descubra agora