Revelações - O evidente omisso

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Verônica

- ...quando a esfera se espatifou, a pelo menos um quilômetro dali, cai de costas e vomitei bastante. Mas depois que me recuperei, corri, tanto quanto pude. E continuei seguindo desde então... - concluiu o Cancioneiro.

Um silêncio se instaurou no local. Eva havia se sentado próximo a Donato enquanto contava sua história. De seu canto, Verônica não conseguia ver a expressão de Violante, pois a quina separava a parede onde estava. Lúcio apoiara o queixo nos antebraços que tinha acima dos joelhos, observando a narrativa aos pés dela.

Donato havia contado, sem interrupções, uma história bastante trágica sobre como perdera seu amante da juventude, quando Deime, o Magíster de sua escola, o cargo máximo em uma escola de magia, pessoalmente o executou ao pegá-los em ato de perversão, algo condenado pela Fé do Sol e da Lua, e por tabela, pelo império de Cerne, desde que foi imposta como a religião oficial há mais de um século.

Verônica, em seus vinte e oito anos, era vivida o suficiente pra saber que outras religiões, com crenças muito distintas, e que ainda influenciavam o nome de muitas coisas ligadas a magia em Cerne, existiam e divergiam sobre essa questão, geralmente tendo opiniões negativas, mas principalmente, sabia que pessoas assim deviam existir desde muito antes da invenção de qualquer religião.

Sentiu que o cancioneiro não falara muito sobre como se sentira em sua narrativa, porque devia ser doloroso e difícil, mesmo para ele, mas de resto não escondera nada, nem mesmo sua relação com o rapaz Iárcan, uma abertura que não condizia com ele. Reviver tudo aquilo fora tão intenso que provavelmente não conseguiu filtrar. Já estava condenado, um crime a mais ou a menos não importasse talvez.

O admirou pela coragem. Ia mesmo dizer isso a ele, quando o irmão se adiantou:

- É mais esquisito do que eu pensei, Bardo - foi a resposta única de Lúcio, ao se levantar e apenas sair ao final da história. Verônica lhe deu um olhar enviesado, que ele ignorou.

Não estava surpresa. A maioria dos caras como Lúcio condenavam homens como Donato, que se interessavam por outros homens. Ainda assim achava irônico quando eram Egos. Não eram todos "párias"?

- Foi muito corajoso da sua parte compartilhar isso. Obrigado pela sinceridade - disse finalmente ao cancioneiro. Então hesitou. Reparou que ele havia olhado para ela quando contava sua história. Algo em seu olhar o fez se sentir... seguro? Sentiu-se culpada. Devia contar a ele sobre Deime?

- Caramba Donato! Devia ter voltado ao C.I.E.M !- disse Violante, visivelmente alterada, falando alto e se levantando. Suas bochechas estavam avermelhadas. Por que aquilo a tinha afetado tanto? - Devia ter denunciado esse Deime. Mas que diacho!! Por que não voltou pra lá?!

Como se fosse tão simples - pensou Verônica, mas nada disse. Sabia que aquele era o jeito da amiga. Decidiu por deixa-los conversando e ir atrás de Lúcio, conseguia imaginá-lo resolvendo fugir em meio a confusão, embora improvável.

Verônica surpreendeu-se imensamente ao ouvir a voz de Eva enquanto saia do cômodo.

- Fico feliz por não ter te matado, flautista...- disse, com aquele tom meio seco e sem jeito que Verônica sabia ser seu jeito de ser acolhedora - Assim pode dar uma boa morte àquele filho da puta um dia.

Decidiu que Donato estava em boas mãos por hora.

Achou Lúcio em pé debruçado á sacada de madeira do quarto de cima. Criava minúsculas bolinhas na mão, como se fossem brasas, e dava um peteleco nelas, fazendo-as saltar noite a dentro. O brilho vermelho sumia em meio ao escuro, fazendo um leve estalo ao desaparecer. Havia provocado ele sobre parecer uma criança tendo de arremessar a própria magia como se fosse uma fruta, certa vez, mais uma das que discutiram.

Cicatrizes da Magia - Memórias de OutremOnde histórias criam vida. Descubra agora