Ceifar e colher - As vezes todos colhem o que um plantou

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Donato

Havia saído correndo da casa da vidente, pulando a janela dos fundos, e ralara levemente o joelho na terra durante o pouso, agora o sentia arder enquanto se mexia. Adentrou uma mata que continha muitas arvores retorcidas, espaçadas entre si mas ligadas nas copas e espinhentas, por sorte a vegetação rasteira era parca; com uma moita ou touceira espinhosa aqui e ali, ainda era possível a ele mover-se em meio a vegetação, mas começava a escurecer, duvidava que conseguiria se mover bem entre elas no escuro.

Tinha ouvidos treinados, ouviu os barulhos de passos atrás das arvores, ao longe. Eram mais de um. Estava revivendo aquele frio na barriga, àquela sensação ruim de ser uma presa. Muitas vezes na vida se sentira dessa forma, mas já fazia algum tempo desde a última vez. Aprendera a se antecipar e bolar planos que o mantivessem no controle da situação, odiava surpresas! Era estranho sentir o coração na garganta como agora.

Tinha que manter a calma, não chegara tão longe para ser pego agora. Como diabos o haviam seguido até ali? Devia ter sido mais discreto. Havia comentado com Lúcio sobre a vidente certa vez, é verdade, entre duas ou três outras pessoas que também tinha intenção de ver. Foi visto por muita gente também, ainda deixara subentendido ser um conjurador ao mercador...Teria sido isso? Que grande imbecil era! Havia ficado descuidado.

A lua iluminava a noite e conspirava contra ele. Estava evitando usar qualquer tipo de conjuração para não ser rastreado, seja pelo mana da magia, seja pelo som. Precisava de um plano. Devia partir para a ofensiva? A vidente o alertara sobre Lúcio, mas quem poderia estar com ele? Sera que haviam mais conjuradores com ele? Como o rastrearam?

A flauta! Lembrou-se de súbito, sentindo-se tolo. Talvez alguém muito sensível sentira o objeto, mesmo em repouso, seria isso possível? Estava constantemente a manipulando para praticar nos últimos tempos, deixara algum rastro?Donato, você ficou confiante.

Seguia ainda numa corrida entre as arvores, quando um flash de luz parecido com um relâmpago transpassou na sua frente, com um estrondo bem alto, medonho! Na pressa e susto apenas sentiu um clarão a quase um metro e meio do nariz, seus pelos e cabelos se arrepiaram e sentiu-se aterrorizado!

O brilho durou um segundo e pareceu queimar-lhe as retinas, piscou vendo estrelas, enquanto aquela energia chocou-se com uma árvore, fazendo um barulho estrondoso que fez várias aves gritarem. A árvore atingida começou a queimar.

Virou-as costas imediatamente, num meio-giro, e disparou em corrida de volta no sentido oposto, meio cego e sentindo-se um coelho numa armadilha por estar indo exatamente na direção que deviam pretender que fosse. Pensou ter visto dois pontos brilhosos no céu por entre as copas, mas devia ser do clarão.

Os galhos e folhas secas no chão faziam muito mais barulho do que gostaria quando pisava neles; agarrou com o braço esquerdo uma árvore enquanto corria, e puxou a si mesmo num semicírculo, parando com as costas para a árvore. Agachou de cócoras numa parte de terra um pouco mais baixa e tentou enxergar de onde veio aquilo por entre as árvores acima. O cheiro de mato queimado impregnava o local, e o fogo havia criado uma claridade ainda maior. Droga! Os caras pegam pesado!!

- Sabemos que está ai - disse uma voz de mulher, de maneira irônica- Por que não se entrega, antes de se machucar, bardo?

Que maldita! Quem era?! Ajoelhado, pegou sua flauta comum, de canudos; compreendeu que teria de apelar à magia. Calma, é só colocar todo mundo para dormir - disse a si mesmo. Começou a tocar, mas sentiu-se fraco e esgotado o fazendo, um cansaço o tomou, apoiou o ombro na árvore. Cansei? Parecia que despendera mais que o triplo de mana para retirar um feitiço de sua canção, sem efeito.

Cicatrizes da Magia - Memórias de OutremOnde histórias criam vida. Descubra agora