Águas não-passadas - A culpa do fraco

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Donato

(Alguns anos atrás)

A casa de banhos onde estavam deveria ser utilizada somente após os treinos, mas Iárcan era ótimo tanto em adentrar locais proibidos, quanto em fugir sorrateiramente aos estudos, e o havia ensinado também. Mas não era só aquilo que aprenderia naquele local...

Donato sempre sentira-se estranho ao perceber que tinha vontade de olhar para os outros garotos por um instante a mais que o normal ou necessário: fosse durante os treinos, quando estavam sem camisa, no quarto, ou simplesmente ao cruzar com um rapaz bonito, ao caminhar. Se segurava ao máximo e dizia a si mesmo que queria olha-los porque queria ser como eles, ver como era o corpo de alguém forte, e coisas assim. Sabia do que o chamavam, mas dizia a si mesmo que era mentira e sentia-se mesmo profundamente ofendido com aquelas insinuações.

Porém Iárcan, o garoto que o salvara de uma agressão onde justamente o chamavam de "bichinha", nunca o tratou como alguém estranho. Sequer conseguia entender o que levara aquele cara tão legal, um conjurador tão talentoso, a se tornar amigo dele. Mas desde aquele dia eram amigos, ele não estava mais sozinho.

Donato o achava o garroto mais incrível que devia existir e ficava bem e mal ao mesmo tempo, a noite, quando pensava no amigo. Até aquele dia...

Estavam sós na casa de banhos de paredes brancas, construída ao redor uma fonte subterrânea, sentados frente a frente, de pernas cruzada sobre si, à beira da piscina de água corrente. Iárcan moldara uma enorme bola com a água morna e agradável da mesma, maior que uma melancia, e a fizera magicamente rolar por seu braço como se fosse uma bola de meia.

Uma fina mas resistente película mantinha toda a água presa dentro da bolha, Donato enfiara a mão nela e viu os dedos se mexerem dentro da água, com uma nitidez sobrenatural, sem que a forma circular se desfizesse ou vazasse.

- Posso fazer grande o suficiente pra você nadar nela, como um aquário gigante que eu posso rolar com você dentro por aí, flutuando. Pode ser meio desesperador no começo, por não dar pra respirar, mas com o tempo fica divertido.

Achou a ideia mais assustadora que divertida, mas o que o encantou é que a magia dava um tom muito brilhoso a água, ao mesmo tempo que a tornava mais clara, muito mais bonita.

-É incrível! Sua magia é tão fascinante !- disse hipnotizado por aquilo- Não é a coisa mais bonita que já viu?

- Já olhei pra coisas mais bonitas - disse Iárcan, fazendo a esfera rolar de volta e se diluir em um rio de água, que caiu de volta na piscina.

Ele não entendeu, e estava olhando a água da esfera se reencontrar com a da piscina, quando o outro chegou perto, muito perto mesmo, pode sentir a respiração do amigo próxima aos ouvidos, então não pode resistir a olhar pra ele. Sua boca era bonita e bem desenhada, um leve cavanhaque escuro da puberdade a emoldurava, então ela se aproximou e tocou a sua.

Moveu sua língua e sentiu o gosto quente da boca dele. Algo prazeroso e ainda assim, terno. Então lembrou-se de si de súbito, e se afastou. A interrupção brusca. Não soube o que dizer, apenas ficou em pé.

- Preciso ir - disse por algum motivo, ao que o outro assentiu levemente com a cabeça, ainda sentado, seus grandes olhos castanhos o estudando de baixo, suplicantes, mas ainda não estava pronto pra sustentar àquele olhar. Vestiu a calça por cima da roupa-de-baixo, uma peça de roupa branca curta e justa nas coxas, que escondia seu sexo e nádegas, e saiu ainda vestindo a camisa de algodão.

Ficaram distantes nos treinamentos nos próximos três dias, e não falaram mais daquilo ou de qualquer outra coisa aquela semana, havia sido torturante. Donato sempre evitava encontra-lo fora dos treinos, ignorando seus olhares, ao mesmo tempo que queria vê-lo, mas quando se viam, fugia. Um jogo estúpido e involuntário.

Cicatrizes da Magia - Memórias de OutremOnde histórias criam vida. Descubra agora