Gháli
A mesa estava disposta com cogumelos cozidos, castanhas de caju, abacaxis em rodela, mamões, bananas e pães recém assados, manteiga e geleia silvestre, mas haviam comido tão pouco destes itens que eram quase meramente figurativos. Tomavam apenas café sem leite em silêncio, uma vez que nenhum dos dois tinha por hábito se alimentar muito bem de manhã , e com os últimos acontecimentos a fome parecia ter sumido de vez. Diziam que a bebida que tomavam vinha desde os tempos antes do Ressurgimento, quando a magia foi entrege pelos deuses a humanidade, sendo muito popular entre a nobreza. Esperava que ela o animasse.
- Faltou açúcar - na gigante mesa de pedra gelo de cor muito branca e semi-transparente, colocada ao centro do grande salão oval, a mãe parecia minúscula, mas sua voz ressoava firme por todo aposento. Um servo se aproximou e adoçou mais a bebida na caneca artesanal feita de louça, ao que a mãe voltou a beber sem encará-lo.
Faltou. É mesmo amarga - pensou Gháli consigo mesmo e sorriu. A mãe, que até então parecia ignorá-lo, viu, com aquele seu "terceiro olho" que nunca conseguiu adivinhar onde escondia:
- Do que ri? - disse ainda sem olhá-lo. Tinha uma percepção espacial assustadora; nada escapava a ela.
- Não estou rindo de nada, mãe, só sorri, porque me deu vontade, uma coisa sem importância - disse, sorvendo aquele aroma meio imagético da bebida.
- Você sempre foi estranho - foi a observação sem emoção.
Para ela a explicação de tudo em relação a ele sempre pareceu ser "você é estranho". Rosália Falcão o tivera aos 20 anos, após um parto muito difícil e que quase lhe custara a vida, segundo sempre lhe disseram. Era ainda uma mulher bonita, mesmo com a velhice, com a pele clara, olhos amendoados e sorriso muito branco, embora quase nunca sorrisse.
Não sabia o que a mãe sentia por ele, mas sabia que sempre desaprovava suas escolhas, mesmo antes dos últimos acontecimentos. Sempre o desaprovava pelo simples hábito, achava mesmo que ela não sabia como reconhecê-lo em outra condição; e como não achava uma justificativa razoável, considerava suficiente dizer sempre "você parece doido" a qualquer decisão que tomava.
Quando era criança e ouvia isso, rolava no chão, se fazia bobinho, dizia que era doido mesmo, punha a língua de fora: e daí que era doido(embora no fundo tivesse muito medo de o ser)? Mas agora era um adulto, bastante comedido, sem que isso tenha sido suficiente para fazê-la mudar de opinião. O que será que ela sabia?
Nessas horas sentia falta do pai, Arquimedes Falcão, o velho imperador que morrera só há pouco, sempre um líder, uma inspiração para todos. Gostava muito dele o pai, e às vezes naquela época ele já sentia o olhar da mãe nas costas (uma desaprovação? Mas o que fazia de errado?). "Você mima essa criança demais, depois sou eu quem tenho de aguentá-la". Não eram muito amorosos um com o outro. As vezes pensava que a mãe talvez sentisse inveja... O pai parecia ligar tão pouco para ela....
- Quer que peça chá aos criados? - perguntou, ao ver que a mãe não tomava o café todo, mas a mãe continuou com a pose absorta e fingiu não ouvir.
O pai morrera numa tenda, enquanto comandava pessoalmente uma expedição para avaliar alguns estragos, e obter informações sobre os ditos Demônios que surgiram na região dos Verdes Vales há cerca de um ano, criaturas não-humanas monstruosas que foram chegando sorrateiramente às Terras Frias. Ainda não sabiam ao certo qual o nível de ameaça de tais criaturas, mas o pai achava que a situação já havia sido negligenciada por muito tempo.
Agora estava feito. O pai talvez não soubera se resguardar fisicamente enquanto soberano, para essas coisas existiam generais e capitães de guarda, mas ele era o tipo de imperador focado em assegurar o prestígio da Coroa, e sua tática sempre fora um contato muito próximo com seus exércitos. Fora assim que recuperara a moral do Império, embora essa nunca tenha se recuperado totalmente após a perda das Terras Quentes pelo avô de Ghali.
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Cicatrizes da Magia - Memórias de Outrem
FantasyE se a queda do mundo houvesse criado uma era medieval mágica, onde existe um império repleto de elementos brasileiros? E se nesse mundo o dom da magia se revelasse muito mais como uma árdua provação do que uma benção? No Império de Cerne, pessoas p...