Tres

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Pela visão de Temrys

Eu andava de um lado para o outro na cela úmida e fria, tentando organizar os pensamentos. As verdade que saíram pela boca de Kelly, aqueles absurdos... parecia loucura. Ataques começaram a acontecer logo depois que a tiara de Dianna foi quebrada, o que significava que Enolan... estava à solta. E dessa vez, com ainda mais material para vingança. E aquela história toda de usar Dianna como recipiente? Era loucura. Foi por isso que ela nasceu humana então, porque ainda no ventre de Kelly recebeu como destino ser uma cela ambulante para um criminoso poderoso. Enquanto fosse humana, Enolan não poderia sair dela. E o que mantinha ela humana, era a magia de Darknid na tiara, que não só sufocava nosso laço como também a possibilidade da magia Mitcha a dominar. Aquilo era complicado.

— Entendeu tudo?

— Sem o colar, Enolan pode se soltar, mas não com poder total, certo?

Kelly concordou com a cabeça, e continuou a explicação:

— Se saiu agora, parte do poder dele ainda está em Dianna. Assim ela pode se transformar, mas se ele não tiver saído...

— Como haveriam ataques sem ele aqui fora?

Kelly coçou o queixo enquanto destrancava a porta da cela com magia, me permitindo sair daquele lugar. Quando concordei em ajudar, ela percebeu que a sinceridade era sim um instrumento poderoso. E eu tinha certeza de que Dianna também concordaria.

— Eu não tenho certeza. Aliados? Talvez aquela conversa estranha dos aspirantes a governadores tenha algo a ver com isso. Um infiltrado.

Caminhei tranquilamente para fora da cela, uma emoção estranha me atingia no peito. Descobri minha parceria com Dianna em meio a tanta emoção, que agora ficava difícil agir naturalmente, ainda mais se nosso reencontro fosse bem diante dos pais dela. Apesar da boa vontade, eu ainda não havia perdoado os três, Darknid, Kelly e Velorn por ter mentido para nós. Principalmente por terem escondido meu próprio laço de mim, mesmo quando ambos conheciam a dor.

De todas as angústias contidas dentro de mim, a que eu mais sufocava era a solidão. Não a solidão carnal, que poderia ser preenchida por qualquer corpo quente que se deitasse ao meu lado, não. Era algo mais profundo que isso. Uma solidão de espírito tão densa, que quando comecei a amar Danna, pensei que estivesse enlouquecendo. De uma hora pra outra, passei a me preocupar com sua segurança, seus sorrisos congelavam meu estômago, e a proximidade acelerava meu coração. Que coisa mais brega e maravilhosa, eu amava. Amava Dianna, e aqueles cabelos longos como um extenso véu negro, sua pele macia e seus olhos faiscantes. Ela era simplesmente a única coisa naquele mundo que importava, e eu me sentia um idiota por ter levado tanto tempo pra notar.

— Se ele tiver saído, ela vai querer se transformar.

Começamos a subir a escadaria pútrida de pedra, passando longe das outras celas com mais prisioneiros. Os guardas mantinham seus olhares retos, e a postura impecável diante de nós.

— Como sabemos se ele saiu?

A luz do sol quase me cegou quando saímos daquele prédio, me fazendo piscar algumas vezes para me acostumar. E Kelly não parou de andar. Mas graças a sua altura reduzida, eu pude alcançá-la em menos de três passos. Olhei para baixo e imaginei Dianna ali, a maldita saudade simplesmente não fazia sentido. Eu tinha visto ela no dia anterior!

— Se ele saiu, ela sentiu. Uma lufada de poder ou uma sensação. Além disso, ela pode achar ele dentro de si mesma.

Sério? Kelly protegeu tanto o segredo que se esqueceu de que a filha poderia descobrir tudo apenas olhando para dentro de si? A caçadora riu, e explicou melhor:

— Ele não pode se comunicar com ela. Se achá-lo, vai encontrar nada mais que uma presença antiga, um poder que não pertence a ela. Então ela jamais poderia saber.

Uma parte de mim ainda duvidava que com a força que tinha, Enolan não conseguiria controlar Dianna de alguma forma. Mas com a certeza que Kelly falou... eu tive que confiar. Caminhamos em silêncio por um tempo, até entrarmos no prédio da realeza, onde provavelmente ficaríamos por segurança. Kelly já havia me falado sobre pequenos ataques nas proximidades, mas precisamente onde haviam menos soldados do exército. E nesses lugares menos protegidos, atacar a população enviava uma mensagem importante para todos: Não estávamos cuidando bem deles. Era um bom plano, eu tinha que admitir. Enolan não perdia o jeito.

— Princesa Kelly... — Uma sentinela nos abordou na porta do elevador, o rosto pálido e os olhos verdes arregalados. — O rei... está chamando você.

Aparentemente mudaríamos de curso, ótimo. Kelly entrou no elevador, mas ao invés de apertar o botão que nos levaria ao andar da Dianna, apertou o da sala do trono. Meus pés batiam contra o chão involuntariamente, meu único alívio era saber que Dianna estava bem. Segundo Kelly, Darknid contaria tudo a ela, e se conseguisse se acalmar, poderia até nos ajudar. As portas duplas de metal se abriram, e em apenas três passos já estávamos naquele enorme salão abobadado. O rei sentado no trono, Amstryn com os braços cruzados ao lado e toda a nossa corte exceto Dianna. Até Kushter estava lá, com a cara emburrada por ser separado da prima. Lancei a ele um olhar solidário, que ele devolveu com um aceno de cabeça.

— Isso não vai funcionar.

O rei elevou a voz, olhando entre Kelly e Darknid, de um para outro com uma grande intensidade. Suas íris coloridas brilhavam pela luz intensa que invadia as janelas amplas, sua voz parecia ainda mais potente com aquele eco do salão.

— Os ataques não são mais físicos, agora envolvem magia. Não dá pra defender o reino enquanto damos aulas de como governar para aspirantes inúteis.

O rei era duro, seco e direto, mas jamais cruel. Ao contrário da rainha falecida, ele fazia tudo por seu reino, mas ponderava antes. E se ele havia chegado a uma conclusão, eu acreditava que era a melhor decisão possível no momento. Mais uma certeza tomei sozinho: ele também não sabia o que Kelly havia feito.

— Por isso vamos cancelar as eleições desse ano. Talvez por algumas décadas. Funcionou com Amstryn porque ele já era da nossa corte, quem garante que o próximo não vai querer competir em poder?

Amstryn como sempre, era uma estátua sem emoções ao lado do rei. Procurei ficar o mais silencioso possível, esperando a conclusão do rei. Não que alguém pudesse discordar, mas seria interessante mesmo assim.

— Por isso, decidi que vou passar a coroa para Darknid. Amanhã.

Kelly engasgou, andou alguns passos para frente, para perto de Darknid e então parou.

— Precisamos nos preparar para algo assim! Não pode ser decidido em uma simples tarde!

Um dos cantos da boca do rei se ergueu, e eu pude ver o rosa dele faiscar. O poder, sim, ele tinha. Da próxima vez que falou, pareceu como uma tempestade calma, a definição contradita da paz e agitação.

— Darknid é preparado para isso desde muitos séculos atrás. Eu sou o rei e decidi, quando for rainha, talvez possa fazer coisas assim também.

Darknid concordou com a cabeça. E todos prestaram tanta atenção neles, que mal me viram saindo de fininho pela porta lateral.

Magia proibidaOnde histórias criam vida. Descubra agora