Onze

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Eu me sentia vazia, e isso era estranho. Não emocionalmente falando, já que nesse sentido eu estava mais completa do que nunca. Mas literalmente. Como se um grande peso tivesse deixado meu corpo, era mais fácil de andar, pular e até respirar. Aquela massa espessa não estava mais lá. Ao mesmo tempo era um vazio estranho, como se meu corpo estivesse acostumado com aquele peso depois de tanto tempo.

Logo após a "avaliação" do meu tio, ele avisou que começaríamos no dia seguinte. Então o resto daquele dia foi basicamente Enolan escutando as histórias de Hyella sobre o tempo que passaram separados. Os dois ficaram na sala, enquanto eu lia um livro de magia de magos com a cabeça apoiada no colo de Temrys. Ele também lia, algo sobre alquimia, seus dedos enterrados no meu cabelo o tempo todo. Admito que as vezes eu erguia os olhos até seu rosto, concentrado em ambas as tarefas que realizava, os lábios entreabertos da forma mais linda possível.

Foi uma rotina estranha. Enolan deixou um pequeno círculo de magia rodeando meu pulso durante toda a tarde, segundo ele para me preparar para o dia seguinte. Parecia complicado, por isso não pedi muita explicação. Quando Temrys saiu para correr, dizendo que estava quase atrofiando dentro daquela casa, Hyella e Cadium não estavam por perto, e Lyrium havia voltado para o reino a fim de manter o disfarce de candidato ao trono. Isso fez com que eu e Enolan estivéssemos sozinhos na casa. Todos os segredos ao meu alcance.

— O que quer saber?

Meu tio fechou o livro em suas mãos, posicionando as mãos no colo com tranquilidade. Me aproximei para sentar no sofá ao seu lado, incerta de por onde começar.

— Quando você se perdeu?

Tapei a boca logo depois de dizer aquilo. Eu vi o olhar de Enolan mudar, a forma como aquela frase o atingiu profundamente. Mas era o que eu mais queria saber, porque ele me parecia uma boa pessoa. E meus pais eram boas pessoas, que haviam se perdido depois do medo irracional que nutriam por ele. Mas para meu alívio, depois de alguns segundos seu olhar voltou ao normal, e ele suspirou.

— Acho que foi quando voltei da quase morte, e vi seu pai jantando com a família... como se nada tivesse acontecido. Foi quando eu percebi que podia ser facilmente substituído. E doeu muito.

Eu imaginei... se sentir descartável com aquele tipo de poder... podia causar muitos problemas. E era esse o detalhe nos "vilões", os traumas os transformavam.

— Como morreu? Digo, pra virar Mitcha?

Era provavelmente uma pergunta indelicada, mas eu precisava saber. E ele não se incomodou em responder.

— Quando eu era humano, as pessoas temiam os meio-sangue. E eu tinha olhos rosa então... me odiavam mais ainda. As pessoas do meu vilarejo, sabiam que eu era o bastardo do rei, mesmo que minha mãe nunca admitisse em vida. — Enolan suspirou, apoiando o queixo em uma mão. — Existiam lendas de como matar um humano meio-sangue, sem que ele se tornasse Mitcha. Uma delas era cortar a cabeça e afastar muito do corpo. Outra era arrancar suas orelhas para que não se tornassem pontudas depois da transformação, e a ultima era queimar vivo com uma mordaça, pra que o sofrimento não fizesse ruído.

Senti um arrepio longo pelo meu corpo diante de tanta crueldade. Como alguém poderia ser capaz de algo assim? Os olhos rosa do meu tio tremeluziram, graças as lembranças sórdidas e perturbadoras que o assombravam.

— Os aldeões pegaram minha mãe de refém, quando eu tinha dezesseis anos. Eu não soube o que fazer, então me entreguei.

Mais um suspiro triste. Mas dessa vez, foi carregado de um tristeza tão profunda, que escureceu toda a sala com poder. Tristeza densa e palpável.

— Eles me amarraram a um tronco. Todos os habitantes da aldeia estavam lá para assistir, quando me amordaçaram. Eles pegaram minha mãe, e a mataram primeiro. Eu gritava, mas não dava pra ouvir com o metal fechando minha boca. Me lembro das batidas aceleradas do meu coração, do suor de desespero, das lágrimas ácidas que desciam queimando... quando eles me queimaram. Foi logo depois do corpo já sem vida da minha mãe cair. Algo em mim morreu naquele dia, antes que eu morresse com fogo. Claro, era fogo mágico, então ele queimava mais devagar. Levou três dias para que eu finalmente morresse.

Eu não tinha palavras, e se tivesse, não seriam o suficiente. Aqueles olhos.. tão fortes e rígidos mesmo depois de toda a tortura que havia sofrido na vida. A rainha sabia como mexer com ele, não só tentou o matar, como fez questão de tortura-lo no processo. Crueldade, essa era a palavra. E por culpa dela todo aquele problema havia nascido. Se não fosse por ela, Enolan teria vivido ao lado do seu irmão. Talvez teria conhecido seu laço, faria parte da família e tudo estaria bem. Mas agora...

— Por que atacou cidades de dentro de mim?

Meu tio franziu as sobrancelhas.

— Não ataquei nada de dentro de você.

Aquilo me pareceu sincero.

— Mas se você, que é o único inimigo do reino, não atacou... quem foi?

Seu rosto já branco, empalideceu ainda mais. Os dedos das mãos se entrelaçaram, sua reação começava a me assustar. Ele batia a ponta da bota no chão freneticamente, quase tão rápido quanto as batidas do meu coração.

— Não sou o único inimigo do reino. — Ele sussurrou.— Acabei fazendo discípulos...

Sua voz antiga e rouca, arranhou as paredes da minha mente. Uma criatura tão poderosa quanto ele, com medo de algo? Ou alguém? Aquilo me assustava cada vez mais. Ergui minha mão até suas costas, tentando trazê-lo de volta daqueles pensamentos que o afastavam.

— Mas Hyella nunca faria nada assim!

Enolan começou a sacudir a cabeça, e se colocou de pé em um pulo. Nesse momento, a porta de entrada se abriu, revelando um Temrys nu da cintura para cima, completamente suado e com o rosto corado. Foi quando ele e meu tio trocaram um olhar, que ele falou:

— Houve mais um ataque. Dessa vez muito próximo. Eles sequestraram todas as garotas de cabelo preto do lugar, com a idade próxima a de Dianna.

Seu peito subia e descia com dificuldade, seus olhos buscavam respostas em meu tio, respostas que ele não podia dar.

— Laenia passou dos limites.

Meu Temrys empalideceu. E mesmo sem saber o que aquilo significava, eu tive medo.

Magia proibidaOnde histórias criam vida. Descubra agora