Alguns acontecimentos começaram a retornar para minha memória. Por muitas vezes, pensei que a vozinha na minha cabeça fosse minha consciência, me avisando o que poderia dar problema depois. As vezes eu tinha essas ideias, que eu pensava serem minhas, mas na verdade... era ele. Sempre foi ele, sussurrando dentro de mim, com sua voz antiga e cruelmente linda.
Em uma das minhas primeiras missões, Velorn e Temrys ainda não tinham noção da minha força como humana rosa, e decidiram testar. Meus pais permitiram, que durante uma missão eu fosse largada no meio de uma cidade grande, sozinha para me virar. Temrys não concordou, mas era isso ou ser preso até que Velorn me testasse, então ele aceitou me vigiar, mesmo que não tão perto quanto esperava. Meu tio-avô me mandou buscar uma coisa específica em um lugar perigoso no mercado, eu seria uma isca. Eles queriam ver como eu me defenderia de loucos fanáticos ou coisa assim.
A cidade era um labirinto, corredores altos de concreto abrigavam tendas de um mercado aberto, imenso e facilmente usado como armadilha para turistas desinformados. Me lembro de vestir um capuz longo, com uma longa capa para me misturar por na multidão. Não durou muito, alguém viu um lampejo rosa e me reconheceu. Mas aquela voz, durante vários minutos ficou martelando: Vire à direita. Siga reto. Não olhe para trás. Melhor correr. E por anos, pensei ter sido meu instinto e consciência. Mas era ele.
Aquele Mitcha, que agora se espreguiçava depois de me ajudar a firmar as pernas no chão. Seu corpo era tão longo quanto o do meu pai, os olhos acesos como os meus, o cabelo tão negro que tinha um tom azulado. O rosto era o retardo de uma beleza pura, pálido e simétrico, jovem como se fosse pouco mais velho que eu. Ele sorriu. E aquele sorriso... eu senti como se já o conhecesse a anos.
— Está bem?
Só naquele momento, me lembrei de como havia doido quando ele saiu. Toquei a nuca com a ponta dos dedos, mas não encontrei nada. Nenhuma abertura, ou sangue ou ao menos uma sensibilidade no local.
— Estou...
O escudo mágico caiu, e Temrys correu em dois passos para chegar até mim. Com uma rapidez que eu nunca havia visto, ele me colocou atrás de si. E mostrou as presas. Como um animal selvagem. Tentei não revirar os olhos, mas acabei soltando um sorriso com a reação do meu tio. Enolan, o completamente poderoso Enolan se curvou diante de Temrys, abaixando os chifres em sinal de respeito. Meu laço recuou, mas ainda me manteve atrás de si.
— Peço perdão. Não devia tê-los envolvido na vingança que era pra rainha.
A boca de Temrys se escancarou. Pude ver em seu rosto, que seria difícil um perdão imediato, mas seu braço se abaixou. Uma oferta de trégua, era o máximo que ele poderia oferecer no momento. Era suficiente.
Meu tio se endireitou quando percebeu que Temrys cedeu, e me estendeu a mão. Era estranho olhar para seu rosto, tão parecido com o de meu pai. Eu tinha tantas perguntas, tantas dúvidas... era difícil organizar cada uma em ordem, ou de forma que fizesse sentido. Deslizei meus dedos pelos de Enolan, sentindo o ponto onde nossas peles se encontravam. Ele havia feito parte de mim, desde sempre. Aquela sensação era... estranha. Ele me conhecia como ninguém, assistiu cada pedaço da minha vida de camarote, o Mitcha mais poderoso do mundo. E agora estava ali, de pé na minha frente, segurando minha mão com a maior delicadeza possível. Não pude conter um sorriso, ao perceber que era bom. Poder ver ele, saciar minha curiosidade...
Hyella tinha lágrimas nos olhos, que rolaram assim que ela piscou pela primeira vez. Cadium e Lyrium exibiam sorrisos largos, uma satisfação estranha dominou meu corpo. Eu havia feito isso, tinha me aberto e deixado ele sair.
— Podemos começar o treinamento?
Hyella parecia ansiosa. E só por isso não me desanimei muito, por ter que esperar um pouco mais até arrancar todos os segredos do meu tio. Ele se alongou, esticando os braços e pernas para se acostumar com o tamanho normal, estar dentro de alguém devia ser bem desconfortável.
— Me deixe ver seus olhos.
Arregalei bem os olhos enquanto meu tio se inclinava sobre mim, inspecionando seja lá o que fosse em mim. Todos se aproximaram, curiosos para saber do que aquilo se tratava.
— Hmmmm — Ele murmurou. — Interessante.
Depois se afastou, coçando o queixo enquanto pensava em alguma coisa. Hyella, contorcia as mãos uma na outra, provavelmente ciente do que se tratava.
— Sabe o que é mais legal em magos poderosos Dianna?
Meu tio sorriu, um triunfo no olhar.
— Não. — Respondi receosa.
— É que magos são amplificadores. O que acha que acontece, quando você mistura um amplificador direcionado para um poder explosivo?
Um arrepio percorreu minha coluna. Aquilo tudo estava em meus olhos?
— Só estava vendo se sobreviveria à tentativa. Quanto mais forte os olhos, mais perigosa a transformação.
Transformação. Aquela palavra ainda me assustava um pouco. Engraçado como dias atrás eu não hesitaria em cortar minha própria garganta para reviver como Mitcha, mas agora o risco me assustava.
— Mas você consegue. Afinal, é sangue do meu sangue.
Certo orgulho preencheu meu peito, não era todo dia que um Mitcha conhecido como ele me elogiava assim. Pra mim era um elogio, me senti forte. Depois de tantas missões sendo protegida, depois da vida toda sendo escondida e privada de aventuras para sobreviver em minha mínima insignificância frágil humanidade... Enolan me achava forte.
— Me diga Danna... — Meu apelido em seus lábios era a segunda mais linda melodia, abaixo apenas do sol dele na você de Temrys. — Está pronta para tomar meu posto de Mitcha mais forte do mundo? Ou prefere se tornar uma Híbrida ainda mais poderosa?
Algo quente se iniciou em meu interior, uma motivação avassaladora. Eu, a princesa mais fraca do mundo... seria a criatura mais poderosa.
A partir de agora.
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Magia proibida
FantasyDepois de tantas confusões, Darknid decide que contar a verdade para a filha é a melhor opção. Ele só não imaginava a montanha de problemas que atrairia depois daquilo.