Eu corria. Como se minha vida dependesse disso, eu corria. Porque dependia mesmo. Mesmo quando meus pulmões gritavam e minha garganta ardia, minhas pernas se sustentavam, e meus joelhos me impulsionavam. Aquela floresta não tinha fim, o prédio ao fim parecia inalcançável. Mas pelo menos eu já conseguia vê-lo. Minha mente girava em possibilidades assustadoras de perder Temrys, mas eu me mantive firme. Além de não esgotar minhas forças após correr mais de duas horas direto, eu precisava não desmaiar quando chegasse, e manter uma quantia considerável de magia comigo, pra garantir que meus queridos familiares não pudessem me enjaular novamente. Eu já estava farta de correntes ao meu redor.
Avistei as primeiras casas da cidade, desviando cuidadosamente até o pátio real. Para passar despercebida, tive que largar a bolsa de mantimentos em uma parte mais afastada, e puxei o capuz negro para cobrir a cabeça, abaixando os olhos o melhor que pude. Quando alcancei a arena, escutei barulhos de treino. O sol começava a despontar atrás das montanhas ao sul, os raios invadindo a área de treinamento já ocupada. Avancei. Não diminui a velocidade quando cheguei no portão, apenas escalei e o ultrapassei com uma velocidade avassaladora. Eu estava mais forte, mais ágil, melhor. Ninguém me pararia agora.
Alcancei a porta de entrada, tão silenciosamente que nenhum sentinela me jogou. Incrível. Eu estava leve, silenciosa na madrugada. Atravessei os corredores e usei as escadas, mal acreditei quando parei de correr, bem em frente ao quarto dos meus pais. Três batidas, fechei a mão para dar três batidas na enorme porta de madeira. Porta está, que alguns segundos depois rangeu, antes de se abrir e revelar minha mãe, enrolada em uma camiseta larga do meu pai.
— Filha!
Seus olhos se arregalaram, e ela estendeu os braços para me abraçar, mas eu dei um passo para longe. Uma expressão de dor percorreu seu rosto, e logo depois meu pai apareceu atrás dela, nu da cintura pra cima, o abdômen marcado como todos os homens com os quais eu convivia. Ele me avaliou, mas não tentou se aproximar. Meu pai entendeu meu olhar, reparou minhas orelhas, mesmo depois que eu decidi esconder meus chifres. Era a marca híbrida.
— Preciso da ajuda de vocês. Nós precisamos.
Minha mãe franziu as sobrancelhas escuras, apertando os braços ao redor do corpo. Me afastei o suficiente para recostar as costas na parede oposta da porta, mas perto o suficiente para que me escutassem sussurrar.
— Eu sei quem era o humano infiltrado que você não podia conhecer. Sei quem atacou as cidades, sei as coisas horríveis que estão planejando.
O queixo da caçadora violeta caiu. Ela perdeu noites atrás daquilo, atrás deles. Mas será que aceitaria a verdade? Meu pai se recostou não parede à minha frente, e cruzou os braços como os meus. A pose despreocupada de sempre.
— Quer nossa ajuda?
— Existe um poder perigoso. Precisamos todos nós unir, sem ressentimentos e sem ódio. Por favor.
Seus olhos, dos quais os meus haviam saído, se fixaram nos meus como uma linha invisível. Eu me sentia testada, podia ver ele debatendo internamente se valia a pena não tentar ler minha mente. Me mantive firme, seria, impassível. Minha mãe não via o que meu pai podia ver.
— Claro filha. Onde está Temrys? Nos conte tudo!
Ela tentou se aproximar novamente, mas dessa vez eu a impedi de uma forma diferente. Estendi uma mão aberta, formando facilmente um escudo de poder que me separava dela. Não deixaria jamais que a rainha tocasse em mim.
— Vão me contar sobre a coroa? Onde está meu avô?
Kelly hesitou, mas meu pai permaneceu na pose.
— Ele decidiu me passar a coroa. — Darknid respondeu— Seu avô está na cabana das montanhas.
Relaxei os músculos, mas não abaixei o escudo. Minha mãe continuava com as mãos estendidas, como se esperando por alguma chance de me agarrar.
— É Mitcha agora?
Ele indicou as orelhas com o queixo, certo desprezo na voz. Minha mãe tremeu. Eu sorri.
— Não importa agora o que sou. Preciso saber se conto com vocês para nos ajudar.
Enfraqueci o escuro, apenas o suficiente para que o rosa da magia se dissolvesse um pouco, para enxergar minha mãe melhor. Nenhum dos dois respondeu a isso, então comecei:
— Eu vou entrar na prova de poder Mitcha, com dois aliados. Isso vai ser mais que suficiente pra vencer, e pra provar ao rei e a rainha... nossa lealdade.
Meu pai pensou por um momento, apoiando o queixo na mão.
— Vai me contar o problema só depois que vencer certo?
— Certo.
— Também não vai me dizer o nome dos seus aliados.
— Correto.
Minha mãe ainda se mantinha paralisada ao nosso lado, quase que alheia à conversa.
— Vocês vão adiar a prova pra essa semana. Quanto antes acontecer melhor. Amanhã está bom
Soltei o braço do escudo, me sentindo confiante o suficiente pra enfiar as duas mãos nos bolsos. Darknid parecia... impressionado. Pela primeira vez, ele sentiu o poder em mim. Ele sorriu.
— Imagino que não vá passar aqui as horas até a prova.
Comecei a me afastar em passos lentos, sem preocupação alguma em ser atacada por trás.
— Vejo vocês na cerimônia de abertura.
Desapareci no corredor sem olhar para trás, apenas escutando os sons dos passos e da porta se fechando. Senti a presença dos meus pais se apagando, por trás da porta com proteção mágica, e só depois disso me senti segura para voltar a escada de emergência. Eu não era burra ao ponto de pegar o elevador, ou de abaixar os escudos conforme corria degraus abaixo. A cada passo, eu sentia meus músculos tremerem com o esforço de correr tanto e manter a magia sob controle, finalmente entendendo a dimensão do perigo que era segurar um poder meio-sangue dentro de si. Um passo em falso, e todo o prédio desabaria. O mais inteligente seria correr para a floresta o mais rápido possível, nem muito longe para ficar ao alcance dos gêmeos, e nem muito perto para colocar o reino em perigo. Mas eu ainda tinha uma coisa a fazer.
Continuei a descer, até chegar no segundo andar, no andar em que os ajudantes ficavam. Usando minhas capacidades de observação e a memória lúcida intacta, vasculhei as portas com os olhos, rapidamente. Relacionei a conversa no corredor, o timbre de voz e todo o contexto que agora eu conhecia, e caminhei até a terceira porta do corredor. Dei três batidas. Laenia tinha um infiltrado humano, transformado em Mitcha magicamente, que aparentemente conhecia minha mãe. Esperei.
— Oi Dianna... Você voltou!
Teodoro abriu a porta, com um sorriso confuso no rosto sonolento. Não era um simples infiltrado. Era alguém que poderia nos assistir de perto sem levantar suspeitas, que não dependeria de um evento como a seleção de governadores para se esconder, mas que poderia se aproveitar muito disso. Alguém que minha mãe poderia reconhecer, não porque se lembraria do seu rosto, mas porque farejaria o dono da magia que a mantinha transformada em Mitcha. Ergui meus olhos por cima do ombro de Teodoro, para Tiana... sua esposa.
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Magia proibida
FantasyDepois de tantas confusões, Darknid decide que contar a verdade para a filha é a melhor opção. Ele só não imaginava a montanha de problemas que atrairia depois daquilo.