Desenove

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Pela visão de Temrys:

Mil possibilidades absurdas invadiam minhas ideias naquele momento. Laerte parecia impassivelmente mais forte, Kamine estava bem diante de mim... e eu não sentia a magia de Enolan. O Mitcha começou a caminhar devagar, seu cabelo prateado oscilando diante do movimento felino.

— Você não imaginou que eu poderia ter invocado os mortos com minha irmã antes de ir atrás de você certo?

Eu não tinha palavras. Eles estavam um passo à frente, avançados e planejando a próxima etapa. Comecei a reunir poder dentro de mim, silenciosamente como Velorn ensinara. Eu tinha uma vantagem, uma que Laerte jamais teria na mesma proporção: experiência. Lutei com diversas pessoas como ele, magos muito mais fortes, monstros mais inteligentes. Respirei fundo para me acalmar.

— Bom, é o seguinte... fique paradinho aí está bem? Laenia está cuidando de Enolan enquanto converso com você. Logo logo essa fase de bonzinho dele vai sumir.

Meu peito deu um estalo. Se existia alguma chance de Enolan voltar para o lado deles, estávamos muito encrencados. Mas pelo menos uma vantagem eu tinha: Laerte gostava mesmo de falar. E tinha tanta confiança no próprio poder, que pensou que eu jamais escaparia. Daria tempo de Dianna chegar no rei pelo menos.

— Certo Laerte, vamos conversar então. Por que está fazendo isso? Vingança?

Me afastei só o suficiente para me sentar em um tronco deitado, com a pose mais natural que pude expressar. Laerte caiu no truque, e se sentou de pernas cruzadas. Mas Kamine, permaneceu ali parada, de pé e me encarando com aqueles olhos sem vida. Não era assim que eu me lembrava dela.

— Ah não. Não é tão simples... veja bem, eu e minha irmã fomos criados para matar. Metade da vida, usamos identidades falsas, mentimos pra as pessoas que mais amávamos. A única verdade que eu tinha, era que amava Kelly.

Amor. Amor não mente, não engana e não machuca. O que Laerte sentia por Kelly era uma paixão deturpada e completamente distorcida do que realmente amor significava. Mas eu não estava fora de risco o suficiente para dizer aquelas coisas.

— Darknid a levou de mim. — Usei todo o meu autocontrole para não revirar os olhos naquele momento. — E desde então ficou mais fácil trabalhar para Enolan. Enfim, eu só quero devolver o favor, fazer ele ver o quão errado está agindo agora. Assim que ele recobrar a consciência, vamos atacar, e ele finalmente vai poder ter o que merece: o trono do reino Mitcha. Com o poder e a influência dele, poderíamos até unir os mundos de novo, humanos e Mitchas.

Minha boca secou completamente diante daquilo. Apesar dos meios terríveis, era um bom objetivo final. Mas quantos atos hediondos não eram justificados por um objetivo nobre? Só dependia de quem estava contando a história.

— Eu e Laenia conseguimos abrir o portal pra resgatar alguma... munição. É assim que somos fortes, usando outros.

Um gelo estranho começou a tomar conta do meu corpo... era medo? Se os gêmeos tiveram poder suficiente para atravessar o portal, então os Mitchas que haviam pego do outro lado... gerações antigas ancestrais, Mitchas cujas lendas eram contadas até os dias de hoje, os poderes que já não existiam entre nós. E monstros, eles podiam reviver também?

— Só precisei ressuscitar a rainha Merabelle, o poder dela nos ajudou a abrir o portal. E do outro lado... ah Temrys, você não faz ideia do que encontramos lá. Quer ouvir?

Eu tinha escolha? Minha mente ainda tentava reavaliar rotas de fuga, onde a melhor opção era me transformar em raposa pra fugir assim que o poder de Laerte sobre Kamine enfraquecesse. Mas quanto tempo ele conseguia sustentar o cadáver sem a irmã perto? Isso eu precisava descobrir enquanto fingia que havia aceitado meu destino.

— Claro. Não tenho compromissos hoje, pode falar.

Cruzei uma perna em cima da outra, e relaxei. De forma que Laerte visse, minha posição não era favorável para uma fuga. Deu certo, porque assim ele mesmo relaxou. Nenhum músculo tensionado, nenhum tremor de nervosismo... eu era a pura calma. Enquanto Kelly usava o manto de calma letal pra isso, eu só precisava do meu bom humor e sarcasmo. E claro, um sorriso encantador.

— Descobri que os mortos guardam ressentimentos. Quanto maior o ódio por alguém, ou a decepção, mais facilmente consigo usá-los para meus propósitos. Como deve imaginar, não vou muito divertido para Kamine morrer esmagada ao lado do seu grande amor, por monstros de sua raça.

Laerte fez a pantera se sentar mecanicamente, e deslizou um dedo longo pelos fios negros, aproveitando para ajeitar um atrás de sua orelha.

— Sabe, você era forte. Podia ter protegido ela. Podia ter salvo ela e Kushter, podia ter impedido que Kelly sofresse tanto... ah Temrys. Deve ser muito triste ser mais fraco que todas as mulheres da sua vida.

Ele queria me desestabilizar. Eu não ia deixar. Sabia que podia ter evitado a morte de Kamine, e teria feito se soubesse onde ela estava. A culpa disso me corroeu lentamente durante anos, conforme eu treinava o filho dela para ser Mitcha. A culpa relação a Kelly também, que se revelou quando eu não conseguia deixar de proteger Dianna. Mas Danna... ela não. Eu não havia falhado com ela ainda e não iria. Ela estava a salvo, era forte o suficiente pra se defender, e isso não me causava nada além de orgulho. Inocente Laerte, pensou que me faria mal se exaltasse o poder de mulheres incríveis.

— De qualquer forma, encontrei toda uma linhagem de Mitchas, hordas inteiras massacradas por Kelly quando ainda era humana. Imagine só o tamanho do ódio de acordo com a humilhação...

Abaixei a cabeça e os chifres, para que Laerte me visse completamente vulnerável e rendido. Como se eu não tivesse saída, como se o desespero me consumisse por completo. Apertando uma mão na outra, fiz com que meu corpo tremesse levemente. O desgraçado sorriu.

— Com medo?

Mas eu ri mais alto. E me levantei.

— Não. Mas vou te dar um concelho de amigo: não conte seu plano se a pessoa não estiver acorrentada.

Depois disso, comecei a correr. E Laerte só percebeu que ele é Kamine estavam imobilizados com meu poder, quando seus gritos de ódio já não podiam me alcançar. Agora eu seguiria em linha reta, na direção do meu laço.

Magia proibidaOnde histórias criam vida. Descubra agora