Vinte e dois

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Minha mãe parecia petrificada, meu pai parecia mais assombrado que nunca. O chão tremeu mais uma vez. As fronteiras da cidade estavam protegidas com um muro Mitcha, além da magia de proteção usada pelos que sabiam praticar. Eu não podia ficar parada, mas ao mesmo tempo não podia fugir daquela situação que eu mesma havia causado. Voltei minha atenção para a briga, e notei que cada um se segurava para não agir. Então decidi o que fazer.

Ergui as mãos espalmadas para o alto, e invoquei uma barreira fina de magia, que protegia Temrys e Enolan de qualquer ataque externo. Depois disso, os chamei e me aproximei, dos seis que agora me encaravam atônitos. Meu primo foi o único que pareceu feliz ao me ver fazer aquilo. Mas não tive tempo para explicar, só comecei a falar com meu pai.

— Essa é minha equipe para a prova Mitcha.

O chão tremeu mais uma vez, e pelo rosto da minha mãe, quase pensei que poderia ter sido culpa da sua raiva.

— Não.

Ela disse por trás dos dentes cerrados, o rosto vermelho de ódio. Mas meu pai estendeu uma mão pra ela, com respeito e a calmaria brilhando no olhar.

— De acordo com a lei, não podemos proibir isso. Mesmo que ele fosse um criminoso sentenciado à morte, o competidor pode escolher quem quiser.

Meu pai ainda ouvia sua razão pelo visto. Velorn parecia mais desconfortável, mantinha as mãos fechadas em punhos para caso precisasse de sua magia.

— Como ousa Dianna? Depois de todo o amor que recebeu de nós, se unir ao inimigo?

Ela apontou para Enolan atrás de mim, que parecia mais triste do que qualquer outra coisa. Seu olhar, era tão profundamente melancólico, tão triste que jamais havia visto alguém assim. Ele tinha aquele olhar quando decidiu que morrer era a única saída? E se... eu não podia deixá-lo pensar aquilo nunca mais.

— Amor? — Contestei. — Vocês me enjaularam desde o dia em que nasci. Mentiram pra mim, esconderam meu laço de mim! — a raiva começou a crescer dentro do meu corpo. — Como ousa chamar de amor o mesmo sentimento deturpado que levou Enolan a fazer tudo aquilo com você? Como pode apontar as diferenças?

Agora eu estava soltando tudo. Cada palavra repleta de mágoa e rancor que eu havia guardado por anos dentro de mim. Finalmente, eu merecia que eles me escutassem. Tinha ficado em silêncio tempo demais, agora eles teriam que me ouvir.

— Passei minha vida toda vivendo uma mentira, me sentindo inferior e fraca porque vocês não souberam lidar com as coisas. Mentiram sobre tudo. Evitavam respostas, e cada um de vocês assistiu enquanto eu mergulhava em um poço de autopiedade tão grande, que quase me matou uma vez. Sabiam disso?

Meu peito subia e descia com rapidez e brutalidade, agora eu me controlava para não liberar poder. Estava tão fora de mim, que poderia dizimar tudo, incluindo aqueles que eu mais amava. Controle. Eu precisava de controle. Mas as palavras não paravam de sair da minha boca.

— Esconderam uma força da natureza, nos sufocaram vivos quando soterraram o laço. Já se perguntou mamãe, como Temrys se sentia depois de ter esperado séculos por mim? Nunca parou pra pensar no buraco de vazio que havia dentro de nós dois enquanto nos perguntávamos como não éramos o suficiente um pro outro?

— Vocês forjaram um laço.

Ela teve coragem de dizer. Um sorriso cruel surgiu nos meus lábios, agora tão carregado de rancor quanto cada palavra que havia saído por eles.

— É mesmo, e sabe por que? Porque somos mais fortes que vocês. Sempre fomos, e é isso que assusta vocês.

Lancei um olhar rápido para meu parceiro, meu laço bem atrás de mim. Seus olhos de fogo, agora brilhavam em tanta confiança, que quase perdi a postura diante de tamanha beleza. Meu Temrys, meu orgulho.

— Eu achei que ia vir até aqui e escolher um lado, mas não é assim que vai ser. Essa guerra começou a muito tempo, mas eu vou acabar com ela. Vocês decidem, se vão ajudar ou não. Só pra deixar claro... Enolan é meu protegido agora.

Era engraçado chamar o Mitcha mais poderoso já conhecido por nós de meu protegido. Seria como um gatinho se colocar na frente de um leão, e miar para protegê-lo de um caçador. Mas isso pareceu ter algum peso, quando puxei uma mecha do meu cabelo, e a coloquei atrás de uma orelha pontuda. Velorn paralisou de susto.

— Onde estão seus chifres?

Foi Kennan quem perguntou. Eu estava quase dando as costas quando respondi:

— Híbridos não precisam de chifres.

Eu senti quando todos interromperam a respiração. Menos Kushter, ele não fazia ideia do que eu estava falando. Mas meu pai... ele olhou firmemente para Enolan, e enquanto nos afastávamos na direção dos inimigos, escutei ele dizer:

— Ele não daria esse poder a ela se fosse nosso inimigo.

Ótimo, então ele sabia. Sabia do vasto conhecimento do irmão, de seu poder e ambição, e acima de tudo, sabia que Enolan não era burro. Se quisesse nos destruir, poderia facilmente aproveitar a oportunidade com os gêmeos, ou até mesmo mudar de forma e fingir ser qualquer um. Aquele escudo que eu havia colocado sobre ele, era para demonstrar o quanto estávamos próximos, ele mal precisava daquilo.

— Qual é o plano?

Enolan perguntou de dentro do escudo mágico, enquanto avançávamos contra nossos inimigos. De vagar, abaixei meus olhos para as mãos, as palmas finas estendidas para cima. Eram pequenas. Muito pequenas perto das de Temrys, delicadas e sem garras. Vejamos, o que eu poderia fazer para provar meu valor, diante daqueles olhos curiosos dos habitantes ao nosso redor? Eles já se reuniam, observando a barreira Mitcha cair, os soldados quase inativos de tanto esforço em vão. E nós nos aproximavam. A raposa vermelha, a lenda viva de Enolan e eu. A princesa cor de rosa.

— Não cheguem muito perto.

Foi a minha resposta. E o que eu não esperava, eles obedeceram. Pude sentir os olhares curiosos por cima do meu ombro, os indignados e os que simplesmente me desprezaram até ali. Cheguei na enorme concentração de Mitchas, e amplifiquei minha voz com magia, alto o suficiente para que todos me escutassem.

— Saiam. É uma ordem.

O muro se desfez. Como se esperassem uma deixa para aquele momento exato, sentinelas começaram a correr dos inimigos, mas eu fiquei. Aquela massa gigantesca de mortos correu em minha direção, mas eu não seria engolida.

Voe Danna.

Não foi a voz de Enolan. Foi a de Temrys dentro de mim. Que vibrou até me dar forças, e me fazer criar aquelas longas asas negras das costas. E eu voei. Sozinha... eu voei.

Magia proibidaOnde histórias criam vida. Descubra agora