Seis

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Visão de Temrys.

Quando eu tinha vinte anos, acabei morrendo em um acidente de carroça. Pulei para salvar uma garotinha, porque sabia que meu pai era Mitcha. Naquela época, podíamos viver por aí sem esconder os chifres e as presas, era fácil renascer sem ser morto logo depois. O único problema era a falta de Mitchas meio-sangue. Não era comum, e como tudo o que não é comum, era temido. As pessoas não conheciam a extensão completa do poder meio-sangue, então era difícil achar um Mitcha puro que se oferecesse para nós treinar. Meu pai era meio-sangue também, e por isso não pode me ajudar muito. Não estava mais vivo quando me transformei, e o medo de morrer como ele, incinerado pelo próprio poder, me paralisou de pânico.

Foi só quando me aventurei a espiar uma certa gangue, que consegui um treinador certeiro. Me enfiei em cima de árvores, e os segui o mais silenciosamente possível: os metamorfos do dragão marinho. Velorn, provavelmente o Mitcha mais forte do mundo depois do rei atual, andava confiante por onde passava. E isso, se devia ao fato de que ele finalizava suas missões com um êxito indiscutível. Eu só podia imaginar, o quão incrível seria se ele aceitasse me treinar. Até... que uma coisa dura me acertou na cabeça.

Quando acordei, tive que explicar para cada metamorfo ali, como tinha espionado eles por tanto tempo, e provar que não trabalhava com ninguém. Depois disso, Velorn me aceitou em seu grupo, e eu sentia as consequências daquilo até séculos mais tarde.

No começo foi ótimo, trabalhar com os Mitchas mais poderosos, observar seus movimento e a magia, criando amizades. O urso Gamantius, era meu melhor amigo. Ele era enorme quando se transformava, bem maior que um urso normal. Era engraçado, porque na forma mais "humana" ele era bem menor que eu, e mais magro. Um cara de sorte e olhos castanhos, que encontrou seu laço com apenas quinze anos de idade. Alatan, o lobo, teve que esperar completar noventa, para se dar conta de quem era seu laço, no meio de uma missão que realizamos em uma cidade abandonada. Sim, uma garota que sobreviveu sozinha por décadas era seu laço. Meritan, a irmã de Alatan, e a águia, também demorou cerca do mesmo tempo, não tanto quanto Kamine, a pantera. Quando Velorn foi pego pelo mago, e subornado para fugir para o mar, nós nos separamos.

Foi quando tudo deu errado.

Em um dos pequenos encontros que fizemos, começamos a lamentar a perda de Velorn. Kamine era a que mais sentia, porque seu irmão era uma parte dela, uma parceria que eu nunca havia visto. Mas ela ainda tinha o príncipe como melhor amigo, e Enolan as vezes. Mas o bastardo era tímido demais para sair em caçadas ou apenas bares conosco. Conversávamos sobre isso quando tudo deu errado.

Estávamos rindo na fogueira, nada de medos ou preocupações entre nós, apenas a pouca felicidade que nos restava sem Velorn. Me lembro de me abaixar para pegar um cantil de vinho, quando um zunido passou raspando pela minha cabeça. Kamine deu um grito, e foi aí que ergui a cabeça para meu melhor amigo. Gamantius estava caído no chão, uma flecha cravada em seu peito. Não pensamos, apenas nos transformamos, e foi um massacre. Perseguimos pelo fato excepcional, os humanos que haviam nos atacado, e com o máximo de crueldade rasgamos suas gargantas.

Quando acabou, não sentimos satisfação ou alívio, apenas a dor da perda de Gamantius. Seu laço morreu logo depois, a dor de perdê-lo foi demais. A águia foi a próxima a morrer. Naquela época, Kamine e eu éramos os únicos que ainda não tinham laço, então saiamos junto com Darknid as vezes. Meritan estava em casa quando uma tropa humana invadiu, matando seu laço e seu pequeno bebê de oito meses junto com ela. Seu irmão Alistan ficou tão louco de raiva, que foi se vingar. Ele era forte o suficiente para isso, mas estava tão cego de ódio que acabou morrendo no processo. Claro que conseguiu levar muitos humanos junto.

Depois disso nunca mais vi Kamine. Nos separamos por séculos, escutei sobre ela e recebi cartas algumas vezes, mas não consegui conversar antes de receber a notícia de sua morte. E em todas essas épocas, em que tive que assistir o mundo mudar, eu me sentia cada vez mais sozinho. Era silencioso, fácil de viajar, observar tudo. Vi Enolan "morrer", vi a dor do príncipe. Tempos depois presenciei a revolta dos humanos, a quase extinção dos magos. Conheci Mullian de longe, observei tudo. E Darknid sabia que eu estava ali. Então o portal se abriu.

Eu tive sonhos ao longo da vida, uma esperança de que meu laço existia, talvez a pessoa do outro lado ainda não. Aqueles sonhos me mostravam um poder absurdo, um cabelo negro e olhos cintilantes que iluminavam a noite. E eu esperei. Conheci Kamine, pensei que fosse ela, mas então ela achou seu laço em Kushter. Kelly nasceu, e quando a vi, pensei que fosse a mulher dos meus sonhos... mas então Darknid me contou que na verdade era seu laço.

Algo dentro de mim morreu aos poucos, me fazendo acostumar com a solidão, me conformando com o fato de que talvez aqueles sonhos não tivessem nada a ver com meu laço. Cheguei a pensar que fosse minha imaginação fértil me pregando peças. Depois aconteceu todo o resto, com os portais e a separação de Kelly e Darknid, eu precisava cuidar dela. Quando suguei sua dor, aquele laço era tão forte... eu pensei que iria quebrar. Nunca contei a ela, mas foi a pior sensação da minha vida. Mas de uma forma estranha, eu sentia que tinha que protegê-la, necessitava manter aquela Mitcha viva.

Quando ela sobreviveu, eu senti muito alívio. Mas não esperança, não em relação ao laço. Eu olhava para Amstryn, devoto e fiel, para Velorn, forte e absoluto, e Teodoro, prestativo e leal. E eu? Eu nunca pensei que fazia parte de algum lugar. A vida toda passei de um lado para o outro, tentando fazer as pessoas sorrirem para aceitar minha presença.

Dianna suspirou de cansaço, a cabeça descansada em meu peito enquanto a nave flutuava pelo ar. Inspirei profundamente, sentindo aquele perfume forte que eu sempre amei. Meu peito se apertou, me senti um idiota por ter reclamado tanto mentalmente. Cada século de espera valeu a pena, se aquela fosse a recompensa. Não queria me jogar em cima dela, e tocar em seu corpo como fosse meu. Não. Eu iria esperar mais um pouco para isso, pra que ela sentisse que eu era dela.

A nave pousou, e com ela, meus pensamentos negativos se foram. Eu só tinha uma missão: proteger Dianna com minha vida.

Magia proibidaOnde histórias criam vida. Descubra agora