Dezessete

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Pela visão de Temrys:

Dianna desapareceu atrás das árvores, carregando nossa sacola de mantimentos em uma mão, e meu coração em outra. Seus cabelos longos oscilaram levemente até onde pude ver, até a névoa escura a engolir por completo. Meu coração se apertou tão forte, que pensei que fosse se partir. Mas aguentei firme, e esperei Enolan me contar o plano.

— Os gêmeos gostam de falar. Quando nos virem podemos fingir surpresa, depois nos separar. Eles vão pensar que o cheiro de Dianna estava conosco por causa das ligações, é nossa melhor chance.

Concordei com a cabeça, pronto para me afastar de Enolan quando este completou:

— Temrys... se cuida.

Minha barriga congelou. Desde quando o maior vilão da história desejava meu bem? Ele amava Dianna e estava arrependido, mas gostar de mim era outra história, completamente diferente. Forcei um sorriso despreocupado, e balancei os ombros como se não fosse nada. Como se os gêmeos não me assustassem. Então dei as costas, e afundei pela floresta.

A cada passo, eu sentia aquele último pedaço de Dianna se afastar, a parte que agora estava fora de seu corpo. Mantive um ritmo de meia corrida, não querendo acelerar o suficiente para que os gêmeos julgassem conveniente me deixar pra lá. Eu esperei tempo demais pra perder agora. Decorei os padrões das árvores, mudando meus olhos para os de raposa que me ajudavam em fugas. Foquei magia em minhas orelhas, para perceber quando alguém se aproximasse. Mais longe. Meu coração acelerado quase não aguentava a pressão, as mãos suadas se mantinham fechadas com força. E então... um estalo. Algo fino se quebrava, tão fino, que se eu não fosse eu não teria percebido. Deslizei para fora da linha reta que traçava, me colocando atrás de um longo tronco de árvore. Então esperei.

Os passos ficaram mais altos, os cheiros evidentes. Droga. Não um, mas dois cheiros diferentes, dois pares de pés. Aquilo não era certo, não podia estar acontecendo. Enolan disse... será que o maldito havia me traído? Em um súbito estado de fúria, esperei até que os dois se aproximassem mais, apenas o suficiente para conseguir enxergar. Não eram os gêmeos. Ou pelo menos, não os dois. Era Laerte... e outra pessoa. Ela era um pouco menor, tinha cabelos longos que cobriam o rosto, negros de um jeito estranho, azulado. Mais escuros que os de Dianna, sem vida e mortos.

— Sei que está aí! Não vou te machucar...

A voz era tão familiar, que arrepiou todo o meu corpo. Aquele homem, que havia invadido meu lar e quase me enganado, que machucou tantas pessoas em benefício próprio. Eu me lembrava nitidamente de cada detalhe, como se fosse no dia anterior. Cerrei as mãos em punhos, e saí de trás da árvore. Laerte hesitou.

Ele estava diferente, sem chifres ou garras, apenas longas orelhas pontudas e presas afiadas e brilhantes através de um sorriso convencido. Ele pensava que podia me derrotar.

— Ora ora.. me diga raposa, onde está ela?

Forcei um sorriso leve, enfiando as mãos nos bolsos. Aquilo tudo era um competição para quem conseguia blefar melhor. Laerte não tinha a irmã, e eu havia me separado de Enolan, meu poder era o suficiente pra sobreviver, mas... até quando? O que impediria Laenia de correr até nossa posição enquanto ele me segurasse? E quem era a mulher ao seu lado?

— Ela quem? Por acaso perdeu uma amante no caminho? Essa daí deve servir.

Apontei a garota com o queixo, que permanência estranhamente imóvel desde que a vi pela primeira vez. A moça não respirava? Se respirava, conseguia fazer de uma forma que seus pulmões não se expandissem, e o ar saindo por suas narinas não fosse escutado. Laerte sorriu, e deu um passo em minha direção. Ele tinha ficado mais alto do que era quando o conheci. O poder Mitcha o deixou mais forte também. Agora tinha feições alongadas, e com o treinamento de Enolan poderia até dar conta de mim se tivesse ajuda. Mas eu havia treinado com Velorn, ninguém mais nessa vida tinha esse privilégio. Ninguém vivo pelo menos.

— Não me relaciono com cadáveres Temrys, tenho um padrão alto. Agora me diga onde está a princesa, para que não criemos problemas.

Era a primeira vez que eu via ele assim, agindo por conta própria. Mesmo que por razões ruins, finalmente não vi sua irmã por trás de cada ato seu. Parecia mesmo que ele se controlava agora. Eu precisava atrasá-lo um pouco mais.

— Ora Laerte, não vamos tomar nem um chá depois de todos esses anos?

Seu sorriso vacilou, pela primeira vez. Parece que já tínhamos um vencedor. A raiva o venceu, e ele fechou os punhos com força o suficiente para que as garras perfurassem a pele— Se tivesse alguma.

— Você me manteve em cativeiro!

— Você traiu todos nós.

— Eu só estava do lado certo!

Analisei o Mitcha de cima à baixo, com uma lentidão provocativa. Conseguia vê-lo cada vez mais irritado, o controle escapando por entre seus dedos livres de garras.

— É mesmo?

O tom da minha voz falava por si só. Minha expressão de superioridade, o peito estufado de ar, tudo uma linda provocação. Que ele caiu.

As pessoas costumam perder o controle da própria magia quando cedem à raiva, isso é fato. O que acontece, é que quando você provoca um oponente, as chances de ser incinerado pela raiva do rival são tão grandes quanto as chances de que ele próprio se destrua. Cresci observando, durante séculos analisando e aprendendo que tipo de estratégias poderia usar com cada um dos Mitchas, com cada uma das personalidades diferentes. E eu sabia exatamente como desestabilizar Laerte, para atacar logo em seguida.

O Mitcha correu furiosamente em minha direção, enquanto eu cruzava os braços esperando. Só precisava desviar das três primeiras, e então acertar no queixo. Mais perto, mais perto e... Laerte parou. Como um choque de realidade, recobriu a consciência, e apoiou as duas mãos na cabeça enquanto murmurava baixinho:

— Eu sei eu sei... desculpe.

Certo... ele não estava sozinho então. Dei um passo para trás. Laerte sorriu mas uma vez, mas dessa vez não foi um blefe.

— Quer saber Temrys? Acho que posso contar meu plano. Depois de alguns segundos você vai estar morto de qualquer forma...

A cabeça da garota que permaneceu parada, se levantou devagar. E enquanto um gelo petrificante se formava em meu peito, ela revelou seu rosto. E aquela pinta debaixo do olho direito... era Kamine.

Magia proibidaOnde histórias criam vida. Descubra agora