Vinte e um

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Enolan corria desesperadamente em nossa direção, apenas alguns metros na frente dos milhares de Mitchas atrás dele. Mas não usavam magia ou poderes, eram apenas uma enorme massa de força bruta, e por seus tamanhos, uma bela força bruta. Eu só podia agradecer pela eficácia dos sentinelas de plantão, porque quando ainda estávamos longe dos muros do prédio real, eles se teletransportaram e nos deram tempo. Tempo, era algo que eu não teria para explicar o porquê de o pior inimigo dos meus pais me seguir agora. E o olhar de pânico no rosto de Enolan na direção de Temrys, indicava que ele também pensava assim. Mas continuamos a correr, até que percebêssemos que os sentinelas estavam fazendo um bom trabalho em segurar o exército inimigo.

— Vocês estão bem? Nossa, aconteceu tanta coisa! Laenia e Laerte ficaram mais espertos desde a última vez que os vi, eles tem um plano, e...

Enolan correu para perto de nós assim que paramos perto da arena, arfando pelo pouco esforço que fizemos para chegar até ali. A prova Mitcha não seria suficiente pelo visto, porque Velorn já marchava em nossa direção. Com Kennan e Amstryn ao seu lado.

— Droga.

Temrys ia tentar ganhar tempo, mas o que conseguiríamos com isso além de mais inimigos? Eles precisavam entender que acima de tudo, que a situação exigia união. Eu não podia imaginar o quão machucados meus pais estavam por causa de Enolan. Mas precisava confiar que pelo menos meu pai teria discernimento pra escolher a razão, e pensar nas vantagens para o reino. Afinal, eles era o rei agora.

Por isso, estendi as mãos abertas para Velorn, quando percebi que ele se aproximava demais. Me coloquei na frente de Enolan e Temrys, encarando a expressão de calma letal que meu tio vestia naquele momento. Aquela expressão não me dava mais medo, agora era só mais uma cara fechada como as outras. Seu olhar estava escurecido, como sombras de pura maldade por cima das íris coloridas.

— Tio... — era uma súplica em uma palavra. — Precisamos de ajuda. Os gêmeos vão trazer mais exércitos, precisamos perseguir eles agora.

Velorn ergueu uma sobrancelha, Kennan cruzou os braços, e Amstryn fixou quase que penetrantemente seus olhos negros nos de Temrys. Parecia até uma batalha silenciosa, os três contra nós três. Eles ainda não sabiam da minha transformação. Mantive minhas orelhas debaixo do cabelo grosso, os chifres eu havia tirado.

No começo, Mitchas primitivos tinham chifres como um objeto para auxiliar na hora de manipular e equilibrar magia. Mas depois da prática, se tornavam um simples adorno de intimidação e na maioria das vezes, enfeite. Era tradição híbridos usarem duas características de Mitchas, mantendo partes do corpo totalmente humanas para exibir o sangue mago poderoso. Eu faria isso, sem chifres e garras, usando apenas orelhas longas e dentes afiados.

— Não precisamos começar uma batalha interna também.

Velorn ergueu a sobrancelha que ainda estava abaixada, apoiando as mãos na cintura. Uma risada seca escapou por seus lábios, eu pude sentir a esperança de Enolan se dissipando atrás de mim.

— Interna? Dianna, acho melhor você sair da frente de Enolan. Vai ser melhor assim.

Temrys deu alguns passos à frente, se colocando na frente de Enolan, bem atrás de mim, fechando sua mão longa em meu pulso. Amstryn não deixou de encara-lo nem por um segundo enquanto dizia:

— Diz pra ela Tems. Já disse tudo o que ele fez?

Senti o aperto de Temrys vacilar ao meu redor, mas eu confiava nele.

— Eu sei de tudo.

Amstryn semicerrou os olhos de ônix, sem nem sequer olhar pra mim um sorriso se formou em seu rosto.

— Ela sabe dos detalhes Tems?

Temrys tremeu. Enolan abaixou a cabeça, e segurou uma mão na outra, tremendo também. Amstryn continuou.

— Dianna sabe das partes sórdidas, coisas que bem Kelly sabe? Ela sabe, que Enolan quebrava seus ossos para testar sua regeneração, enquanto você se forçava a sugar a dor da mãe dela? Ela sabe Temrys, que você continuava sugando a dor de Kelly, mesmo quando Enolan arrancou suas unhas e tentou fazê-lo nadar em uma poça do próprio sangue? Aposto que ainda se lembra das gargalhadas dele.

As imagens me vieram na mente. E aquela voz era tão cruel, tão carregada de dor e ódio, que tudo se tornou mais real. As palavras, a narrativa dos acontecimentos, o brilho que faltou nos olhos de Temrys quando eu tentei olhar pra ele... algo em mim se quebrou. Enolan não havia me contado aquela parte, e Temrys também não. Meu laço, o homem que eu amava e deveria proteger, guardou toda a dor da tortura para si durante anos, e no fim escolheu não me contar, decidiu dar uma chance para o homem que havia o ferido tanto. Como eu pude fechar os olhos diante daquilo?

— Isso é verdade?

Não perguntei pra Temrys, ele merecia esquecer tudo aquilo. Enolan levantou a cabeça devagar, culpa brilhava nele. Aquilo doía demais, mas eu não tinha escolha. Minha voz estava trêmula pelas lágrimas, mas a dele...

— Sim.

Estava dolorida. Arrependimento, eu vi em seus olhos. Mas aquela decisão não era mais minha.

— Temrys, você decide. Se ele continua conosco, ou se o deixamos. — Ele ergueu os olhos, confuso. — E não pense no poder, temos o suficiente para contra atacar. Eu vou te seguir por onde for.

Sua mão caiu, se soltando do meu braço e ficando finalmente inerte ao lado do corpo. Eu a peguei com a minha, e apertei em sinal de apoio. Seus olhos de rubi viraram piscinas fluidas, mas nenhuma lágrima rolou. Ele respirou fundo, fungando.

— Tarde demais para desistir dele agora. Isso não muda o arrependimento dele.

Três figuras se aproximaram ao longe, correndo em nossa direção. Voltei a concentração para Temrys e tentei argumentar.

— Mas ele não me contou.

— Ele tentou. — Franzi as sobrancelhas, minha confusão fazendo ele explicar. — Mas eu não deixei. Queria que tivesse q chance de perdoar ele, de entender. E vocês tem uma ligação tão especial... não quis estragar isso.

Eu não tinha palavras para Temrys. Não tinha condições de pensar no motivo por trás da natureza escolhê-lo para ser meu laço. Jamais seria digna de um Mitcha como ele, ninguém seria. Meu sorriso arrancou lágrimas, me fazendo pular em seu colo. Sua gargalhada me fez vibrar contra ele.

Mas a alegria se dissipo, quando meus pais e Kushter chegaram perto demais.

Magia proibidaOnde histórias criam vida. Descubra agora