O plano era simples: me atirar sobre a prova de poder Mitcha, com dois aliados e a esperança de conquistar a confiança do povo em mim, e principalmente, a confiança de minha mãe em Enolan. Não seria fácil, para não comprometer Hyella e os outros, apenas eu, Temrys e Enolan entraríamos no prédio real. Depois de deixar Hyella e os outros em um lugar próximo e seguro, vestimos nossos capuzes e começamos a jornada. Enolan pediu a Temrys que evitasse o teletransporte, já que sua magia era facilmente detectada. Nenhum de nós usou poder, não sabíamos se Laenia e Laerte estavam muito próximos.
— Você tem pesadelos?
Estávamos sentados na frente de uma fogueira larga, o fogo crepitando e fazendo a madeira estalar, os braços de Temrys cuidadosamente posicionados ao meu redor, Enolan de olhos vítreos evitava as chamas. Eu sabia o motivo.
— É uma maldição. Cortesia da antiga rainha Merabelle.
A esposa do meu avô. Minha avó. Eu tentei esquecer a memória dos gritos desesperados dentro da minha mente, mas Enolan parecia tão machucado... Temrys apertou de leve meu braço, em sinal de apoio.
— Ela me lançou uma maldição antes de morrer. E é por isso que sonho com meu maior medo sempre que consigo dormir.
Aquilo devia ser doloroso. Não só isso, mas calar seus gritos por tanto tempo dentro de mim. Eu jamais senti sua dor, o desespero... ele manteve tudo para si, enquanto permanecia calado. Esse era Enolan o vilão que todos pensavam ser forte e destemido, na verdade estava completamente dilacerado por dentro. E se recusava a pedir ajuda.
— Qual é seu maior medo?
Tems perguntou quando eu menos esperei, era curiosidade em sua voz? Uma esperança boba me dominou, parte de mim queria muito que os dois se resolvessem. Mas eu sabia que era praticamente impossível depois do que Enolan fez a Temrys.
— Ver Dianna queimar... como eu queimei. No fogo de Merabelle.
Senti quando Temrys prendeu a respiração, o medo se extendendo até ele. Isso não seria possível em outra situação, mas se Laenia e Laerte descobrissem como usar o feitiço dos prateados... seria uma possibilidade. E eu conseguia ver na pupila diminuta de Temrys, como aquilo o assustava.
— Eu ia morrer. — Meu tio voltou a falar. — A única coisa que me mantinha vivo era a vingança, então quando Kelly me capturou, eu ia morrer. Esperei ter a chance, mas nunca pararam de vigiar minha cela. Meu objetivo era causar um colapso de magia, mas era impossível naquele lugar. Tentei cortar minha garganta com cacos de barro, dilacerei até com minhas próprias garras... — ele olhou para as mãos, quase enxergando o sangue azul brilhante. — Mas minha cura era muito rápida. Quando começaram a se movimentar pra me soltar, eu planejei tudo. Mas aí me colocaram dentro de você...
Seus olhos rosa cintilavam debaixo da noite, como duas luas gêmeas em um mar de escuridão. Olhar pra ele era como olhar para um reflexo de mim mesma, só que masculino e um pouco mais alto. Haviam lágrimas em seus olhos, era o que os fazia brilhar.
— E eu vi você nascer. Vi você dar os primeiros passos, e quando me dei conta... eu já não conseguia mais pensar em nada além de te proteger. A culpa, a consciência... tudo voltou. Eu quis viver. Apesar dos erros e do ódio, eu não me sentia mais vazio. Graças a você.
Eu mal conseguia enxergar debaixo das lágrimas que se formavam em meus olhos. Sem pensar duas vezes, pulei do colo de Temrys e corri na direção do meu tio, desviando só da fogueira que me queimaria. Ele me recebeu de braços abertos, e pela primeira vez... nos abraçamos. Tantos anos dentro de mim, e aquele toque ainda não havia sido possível. Meus dedos se agarraram ao couro de sua jaqueta, meu nariz fungava de tanto que eu chorava. Eu quase o perdi... e saber de tudo aquilo partia meu coração. Eu precisava mesmo convencer minha mãe a...
— Temrys!
Meu tio me afastou bruscamente depois de um tempo, e tirou a jaqueta para abafar o fogo. Jogada de lado no chão, não entendi do que se tratava, enquanto Enolan e Tems trocavam olhares nervosos. Meu laço respondeu:
— Eu ouvi.
Lentamente, o ruivo começou a pegar as coisas do chão, tão silenciosamente, que se eu não estivesse assistindo aos movimentos, jamais saberia. Enolan me pegou pelo pulso, e começou a se afastar da pequena clareira que havíamos arranjado.
— É o cheiro deles. Estão mais perto do que esperávamos.
Eles. Não precisei perguntar quem eram, pela pressa e o desespero, estava nítido. Fui puxada para frente, Enolan segurando meu pulso de um lado, Temrys agora me puxando pelo braço com uma das mãos, enquanto carregava uma bolsa cheia de mantimentos com a outra. Avançamos. Desviando de árvores, pulando por troncos longos e tentando não escorregar nas pedras lisas pelo meio do caminho.
— Precisamos nos separar.
Temrys parou bruscamente diante da declaração de Enolan.
— Podemos lutar. Somos fortes o suficiente, não vou deixar Dianna!
Ele entrelaçou seus dedos longos nos meus, e tremia tanto que os buracos de traumas em sua alma eram quase nítidos. Por quanto tempo ele teria esperado por mim?
— Somos o suficiente se eles não souberem invocar os mortos. E é justamente por isso que estamos indo encontrar os dois Mitchas que mais querem me ver morto no mundo.
Era uma ordem. Sua fala não deu oportunidade para discussão, não nos deu escolha. Era isso, ou correr o risco de sermos pegos por uma horda de Micthas poderosos.
— Se separarmos os irmãos, não vão poder invocar nada.
Agora o olhar de Enolan estava preenchido de cautela, como se sentisse a aceleração no pulso de Temrys, o desespero pelo medo do que poderia acontecer. Apertei mais firme a mão do meu laço, e tentei reproduzir pelo menos um pouco do que um olhar de confiança poderia trazer. Eu me sentia desesperada. Correr sozinha e ter a chance de ser pega por um Mitcha que me odeia, ou dar de cara com um dos meus pais sozinha e tentar sobreviver à conversa... nenhuma das opções me parecia boa. De qualquer forma, quando encontrei meu laço... pensei que não precisaria fazer mais nada sozinha.
— Eu confio em você.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Magia proibida
FantasyDepois de tantas confusões, Darknid decide que contar a verdade para a filha é a melhor opção. Ele só não imaginava a montanha de problemas que atrairia depois daquilo.