Vinte e sete

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Por algum motivo, os gêmeos só nós observaram por um tempo. Eles não fizeram menção alguma a atacar, por isso Temrys se arriscou em questionar.

— Pensei que jamais encontrariam o corpo de Kushter. Ou o violariam dessa forma. Mullian então...

Os três mantinham olhos coloridos sobre nós, completamente vidrados sem vida alguma. Minha avó era linda. Como minha mãe tinha aquele cabelo longo e escuro, a pele pálida que eu imaginava que sempre fora assim, mesmo antes da morte. Enolan estava petrificado, e pela primeira vez pareceu ter medo. Minhas mãos suavam por baixo das luvas, mas apesar disso apertei a mão de Temrys com força.

— Você não sabe de nada. Enolan nos ensinou como acabar com cada um de vocês.

Os ombros do meu tio tremeram, mas ele não demonstrou nada além disso. O trio continuava parado, imóvel e nos encarando com aquele olhar vazio. Meus olhos se prenderam em Mullian, o feiticeiro mais famoso da história. O homem que sozinho, abriu um portal e criou um mundo só para Mitchas. O último mago conhecido do mundo humano, sucessor do meu avô. Mas por que Kushter estava ali?

— Sabiam que Kushter nunca chegou a usar seu poder em vida? — Laenia ronronou enquanto passava uma mão cheia de garras no pescoço do morto. — Ele tinha aversão ao poder quase infinito que possuía, odiava seus olhos rosa. Odiava tanto, que quando o filho e a esposa foram despedaçados na sua frente, ele não tentou combater. Ele ficou só assistindo.

Logo depois que ela terminou de falar, os três em nossa frente deram meia volta, e quando já estavam longe o suficiente, Kushter abriu as mãos. Uma barreira mágica caiu, prendendo todos nós, menos os três dentro. Como soldados sem vida e nem emoção, aqueles três marcharam para longe de nossas vistas, nos deixando de queixo caído. Laerte continuou.

— Quando acabarmos com vocês, eles já vão ter chegado lá.

— Magia assim só pode ser desfeita com o próprio criador. — Laenia ergueu uma mão cheia de garras para a barreira.— Não é lindo? Mesmo que nos matem... não vão conseguir salvar seu reino.

Enolan deu um passo à frente. Mantendo as mãos fechadas em punhos arrobados com a luva de prata, ele suspirou. Um suspiro cansado, quase que decepcionado.

— Por que? Pode me dizer? Sei que queria me trazer pra esse lado. Mas o que te motiva?

A garota pareceu prestes a perder o controle. Seus olhos se escureceram, quase tão perdidos quanto os dos mortos que haviam acabado de sair dali. Um arrepio correu por minha espinha, porque quando ela falou... a voz era nada menos que puro ódio.

— Kelly tirou tudo de mim. Tínhamos um plano, você e eu. Mas não... Todos queriam ela, sempre foi sobre ela. Laerte, Darknid e até você por mais que não admita. Ela nem sequer tentava. Enquanto eu acordava todos os dias e sangrava pra ser a melhor. Ela nem sequer queria, e tinha tudo tão fácil... só quero que ela sinta na pele. A caçadora violeta... Quero que saiba que agora é sobre mim.

Senti um formigamento começando de dentro de mim. Até meu próprio poder não suportava que aquela garota falasse daquela forma sobre minha mãe.

— Não.

Eu sussurrei. Mas o sussurro foi tão cruel, frio e alto, que até os cadáveres longe de nós poderiam ter ouvido. Senti todos os olhos sobre mim naquele momento, quando estendi apenas uma mão e completei:

— É sobre mim.

Ela não teve tempo de raciocinar. Quando deu por si, já estava sendo esmagada contra a barreira, entre a magia dela e a minha, duas forças poderosas. Meus tios me encaravam atônitos, mas Temrys... seus olhos transmitiam tanta admiração, que quase perdi a concentração por um momento. Impulsionei ainda mais, e só nesse momento Laerte saiu do transe de ver aquilo tudo. Ele ergueu os braços para mim, mas foi impedido. Juntos, Enolan e Velorn o prenderam com sua magia. Em uma sincronia tão absurda, que até ele mesmo pareceu impressionado.

— Eu duvido, — comecei. — que a barreira não caia com uma colisão.

Laenia pareceu se desesperar. Seus olhos dourados se arregalaram, mas eu estava tão fora de mim, que não senti pena alguma.

— Vai matar todos nós!

Um sorriso felino começou a se formar no meu rosto. E finalmente eu sentia, a dimensão do meu poder, e de tudo o que eu seria capaz se deixasse que ele me dominasse. Mas ainda não.

— Não... você vai dar o impacto.

Se eu tentasse destruir com meu próprio poder, uma explosão sem medida seria gerada. Assim, mesmo com um poder imenso, não daria tempo de magia alguma proteger-nos. Apertei os dentes enquanto tentava manter o controle, com tanta força que poderia ter quebrado. Temrys ainda me encarava, meus tios seguravam Laerte para me dar tempo. Eu sabia que seria perdoada por tirar a vida de alguém, mas... ainda soava cruel demais. Por isso eu daria a ela uma chance.

— Você pode chamar Mullian e abaixar a barreira. Se não quiser morrer.

Mas os olhos arregalados da garota se fecharam, por um breve momento. Quando se abriram novamente, transmitiam nada.

— Pode me matar. Sua mãe morre junto.

Algo em mim se estalou. Perdi o controle depois disso, e só me lembro da força que fiz. Para frente, e para frente, empurrando a magia em meio a um grito de ódio tão intenso, que me cegou. Outro grito se uniu ao meu, mas de pura dor e agonia. Até que se calou. Tudo estava claro demais, mas aquele silêncio do único grito, deixava tudo escuro. Meus ouvidos zuniam, braços fortes envolviam minha cabeça. Levei alguns segundos para acostumar a visão, e conseguir reconhecer a destruição.

Ali no chão, estava estendido um corpo completamente carbonizado por magia. As costas do que um dia havia sido uma garota, estavam completamente abertas para o céu. Seu abdômen igualmente, o chão manchado de vermelho, órgãos e carne espalhados por todo o lugar... e um macho ajoelhado diante daquilo tudo. Chorando.

— Não temos tempo pra ele. — Velorn disse cruelmente. — Kelly corre perigo.

Laerte ergueu os olhos dourados manchados de vermelhos para mim, o reflexo de um homem completamente destruído. Ele não tinha nada mais a perder.

— Não tem como salvá-la. Mesmo que eu morra, Mullian e Kamine só vão parar quando ela estiver morta. Ah... Kushter é o real perigo.

Pensei em me livrar dele ali mesmo, mas Velorn estava certo. Não tínhamos tempo pra isso. Então dei as costas para o massacre, e estendi a mão para meu laço. Temrys entendeu. Tems ergueu as membranas finas e avermelhadas de suas costas, criadas a partir da magia linda que carregava. Meus olhos brilharam quando suas mãos se posicionaram em minha cintura, e ele se abaixou para sussurrar em meu ouvido.

— Não se empolgue, vamos para o ar.

Um sorriso profundo, foi toda a minha resposta.

Magia proibidaOnde histórias criam vida. Descubra agora