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Recuperei a consciência um tempo depois, não sei ao menos quanto tempo se passou, segundos, minutos, horas ou até mesmo dias. Minha cabeça estava uma bagunça, lembranças se embaralhavam como um novelo de lã me dando dores insuportáveis. Alguns cientistas vinham me observar anotando tudo em uma prancheta e saindo tão quietos quanto entraram.
Ingrid era a única que trocava poucas palavras comigo. Algumas vezes fazia como os outros para que não suspeitassem de nosso vinculo, a verdade é que a mulher se tornou alguém especial para mim em tão pouco tempo. Ela continuava se recusando a me contar o que fizeram comigo e como vim parar aqui sendo que não lembro nada antes de acordar nessa sala a primeira vez e tentar fugir.
Mantive minha cabeça baixa sempre que o tal chefe entrava na sala, ele queria que eu me exaltasse, queria que eu tentasse escapar novamente. Sempre me testando até o máximo para que eu mostrasse a eles do que era capaz, mas não fiz nada do que queriam. Apenas sentei no canto da sala e abracei meus joelhos os trazendo para mais perto do meu peito como uma forma de proteção de defesa. Algumas lágrimas chegaram a escapar, mas as sequei antes que caíssem em minha roupa, não iria demonstrar fraqueza nem que eu estava potencialmente quebrando.
Ainda lembro-me das palavras da cientista dentro daquela sala enquanto me sedava sem nenhum tipo de remorso. Sou uma cobaia de estudos para esses cretinos e eles estão dispostos até mesmo a me deixarem morrer para conseguirem resultados positivos do que há de estranho entre mim e aquele alien.
A porta estalou e uma pequena comporta se abriu enquanto uma bandeja com comida foi empurrada para dentro e fechada novamente. Ergui-me cambaleando por alguns segundos caminhando até a bandeja, meu estomago gritava de fome e implorava por algo para comer. Eu a peguei e me sentei na maca onde eu agora chamava de cama comendo aos poucos. O sabor não era ruim, mas algo dentro de mim sabia que já havia experimentado coisas melhores.
Comi com o pensamento longe, o alien não entrou mais em contato, creio que as doses de sedativo sejam aumentadas gradativamente. Todos nesse lugar são medrosos demais para deslizar em algo assim. Parei de comer esticando um de meus braços, vi a marca da seringa que retirou meu sangue ainda presente em minha pele, eu a toquei sentindo um arrepio percorrer meu corpo. Tentei ignorá-la voltando a comer, assim que terminei foi como mágica.
A porta se abriu e guardas passaram por ela fortemente armados acompanhados pelo chefe do lugar. Ergui meu rosto o encarando sem nenhum tipo de medo ou com intenção de lutar. Ele olhou para minha bandeja e acenou para o primeiro guarda, este veio pegando o pedaço de metal da minha frente o segurando provavelmente para levar embora.
— Vamos, precisamos testar o que você pode fazer. — pronunciou ríspido. Franzi o cenho não compreendendo o rumo de suas palavras, os guardas vieram e prenderam minhas mãos com algemas grossas e pesadas, me ergueram pelos braços e tiraram da sala seguindo pelo corredor.
— O que vão fazer agora? — perguntei mantendo meu tom neutro, o cientista virou um pouco a cabeça arqueando uma sobrancelha.
— Você possui habilidades extraordinárias minha cara, vamos apenas testá-las para se adequar a nossos objetivos. Testar também como pode ser ativado. — Sorriu maldoso enquanto continuou seu caminho.
Fomos pelos corredores do lugar passando por portas fechadas e algumas abertas com pessoas trabalhando lá dentro, eu então presumi que todas deveriam estar dessa maneira. Paramos em frente a uma porta dupla da qual o chefe empurrou passando por ela sendo seguidos pelos guardas e por mim. Era uma enorme sala com isolamento, computadores espalhados por ela e três pessoas digitando ferozmente sem nem mesmo desviar os olhos das telas.
— Coloquem-na lá dentro e vejamos do que ela será capaz. — ordenou enquanto os guardas me arrastaram para dentro, um deles soltou minhas algemas e o outro abriu a porta me empurrando com violência para dentro. A porta foi fechada e trancada. O vidro que eu olhei era como o de minha sala, espelhado para que eu não os visse.
Virei examinando atentamente a sala. Até as paredes se moverem e virarem se tornando tudo escuro, permaneci parada sem saber o que fazer ou como reagir. Fechei as mãos com força não sabendo o que viria até mim. A sala foi iluminada e se tornou uma floresta cibernética real até demais. As folhas, a grama e todo o resto pareciam reais, até mesmo pude sentir o cheiro que a mata exalava.
Ouvi um barulho e vi arbustos se mexendo, de repente alguém saiu deste com uma arma estranha em mãos. Branca e comprida com alguns vazados nas laterais mostrando um tipo de luz avermelhada. Era um homem e ele apertou o gatilho atirando diretamente contra mim, pareceu me acertar em cheio tirando minha respiração do eixo e me derrubando no chão.
Queimava como brasa, parecendo se infiltrar em minha pele e acertar dentro de mim me fazendo gritar desesperada. Arrastei-me para mais longe colocando uma mão sobre onde fui acertada, olhei para baixo notando que não havia ferimento nenhum. Minha pele estava limpa e nem mesmo havia um rasgo em minha roupa. Olhei para tudo aquilo confusa enquanto a pessoa que me atacou veio em minha direção para atacar novamente.
— O que é isso? — sussurrei ficando em pé novamente, mais pessoas surgiram com as mesmas armas me deixando temerosa. Minha mente trabalhava em turbilhão tentando encontrar uma maneira de sair dali sem sentir mais nenhum tipo de dor. O tiro pode não ter sido real, mas eu sei que a dor de certa forma foi. — N-Não me mate, por favor. — Implorei sentindo minhas pernas ficarem cada vez mais moles, quase cedendo, mas eu não iria cair, não iria ficar de joelhos.
“Ataque de volta. Não deixe que vejam seu medo. Se concentre.”
A voz grossa soou como uma segunda consciência em minha cabeça, eu não demonstrei nada já que eu sabia que estava sendo observada. Ouvi os estalos das armas sendo destravadas ao mesmo tempo enviando temor por meu corpo. Respirei profundamente controlando meu medo e fechando minhas mãos com força procurando algo dentro de mim para lutar contra tudo aquilo.
Rangi os dentes ouvindo os disparos novamente, mas dessa vez estiquei minhas mãos abertas em frente ao meu corpo como proteção, não senti nada me acertando ou até mesmo doendo. Abri os olhos vendo os lasers parados no ar não muito longe de meu corpo. Abri a boca sem saber o que falar ou até mesmo como reagir, tudo o que sabia era que precisava me defender e não deixar que me usassem como bem entendessem.
Vociferei colocando tudo para fora, toda minha raiva e meu medo. Foi como uma rajada poderosa de ar, eu movi meus braços os empurrando para longe e tudo o que vi foram pessoas voando para todos os lados e caindo no chão enquanto ouvi ossos quebrando e corpos não se mexendo mais. Olhei minhas mãos não acreditando que fui capaz de fazer aquilo.
— Obrigada. — agradeci baixinho sabendo que de alguma forma o alien estaria me ouvindo, tentei manter minha voz baixa para que não descobrissem que estávamos nos comunicando.
“Pude sentir seu medo, sua aflição. Precisava te ajudar, fico contente que tenha funcionado.”
Apoiei uma mão em meu joelho sentindo um cansaço fora do normal tomar conta do meu corpo, respirei pausadamente algumas vezes sentindo algo molhando minha boca, passei a língua sentindo o gosto metálico de sangue. Rapidamente toquei meu nariz sabendo que o sangue estava vindo dali. De inicio tive medo, mas logo percebi que fiz esforço demais por causa desses imbecis me testando.
O cenário mudou de repente voltando para a imensidão branca de antes, cai de joelhos no chão apoiando as mãos neste vendo uma gota de sangue cair de meu nariz e respingar no meio de todo o branco. Tomei controle limpando minha narina sabendo que não havia acabado ainda. Fiquei em pé sabendo que meu braço estava sujo de vermelho. As paredes se abriram revelando um alien verde enorme. Seus braços eram longos e finos assim como suas pernas, sua cabeça era revestida com escamas e olhos iguais aos de uma cobra, dentes afiados e uma língua longa enquanto em suas costas saíram tentáculos nojentos e gosmentos. Ele gritou vindo correndo até mim. Desviei de seu imenso corpo, mas senti seu tentáculo envolvendo meu tornozelo e puxando com violência para trás batendo minhas costas com força na parede.
Cai no chão gemendo de dor, o monstro veio até mim segurando meu cabelo o puxando para cima me levando junto. Seus olhos brilharam quando focaram nos meus, seu tentáculo subiu por meu corpo envolvendo meu pescoço cortando bruscamente meu ar, arregalei os olhos tentando puxá-lo para longe, mas sua pele era muito escorregadia.
Pense garota. Pense.
Não estava mais conseguindo me manter acordada, mas precisava escapar dessa ou iria acabar morta e ninguém fora dessa sala iria ligar para isso. Soltei seu tentáculo e ergui minhas mãos flexionando meus dedos em direção a minha palma com força fazendo o alien gritar tentando de todo jeito repetir o que eu fiz com os guardas, mas agora usando conscientemente. Dei meu último grito e afastei minhas mãos uma da outra bruscamente rasgando o desgraçado ao meio espalhando seu sangue esverdeado para todos os lados, inclusive em mim.
Cai puxando ar como quem precisava de água no deserto. Levei minhas mãos ao pescoço soltando o tentáculo do morto o jogando para longe. Chutei o alien sem vida passando por cima dele ficando no centro da sala. Olhei fixamente para a janela vendo pelo reflexo as grossas veias roxas distribuídas por minha pele e meus olhos dourados, e sabendo que todos ali presentes estavam com medo. Não precisava vê-los para saber exatamente isso.
Eles estavam me temendo, eu sabia.
É bom que tenham mesmo medo de mim.
Olhei ao redor vendo o tamanho do estrago que eu havia feito. As paredes perfeitamente brancas agora havia respingos verdes por todos os lados, mais ainda no chão onde o alien estava jogando. Meu nariz continuava sangrando, mas não dei a mínima para isso.
— Isso foi impressionante minha cara. — a voz do cientista ecoou pela sala dando uma pequena interferência pelo microfone. — Nunca havíamos presenciado isso antes. Foi extraordinário. — Ele estava exultante, provavelmente saltando de alegria como uma criança que acaba de ganhar o brinquedo dos sonhos.
— Ela é um monstro. — Ouvi alguém sussurrar dentro da sala o que me fez sorri suavemente.
— O teste foi um sucesso. Busquem-na. — ordenou enquanto a porta pela qual entrei foi aberta e alguns guardas entraram atirando contra mim, senti meu corpo ser atingido por dardos enviando sedativos por meu corpo e veias me fazendo cair duramente no chão.
A sala branca aos poucos desfocou e foi ficando cada vez mais escuro, meus braços foram puxados e meu corpo foi colocado sobre o ombro de um guarda com facilidade. Meus braços estavam pendurados e minha cabeça doendo. Estava tão cansada, não aguentava mais ficar com os olhos abertos. Acabei cedendo ao sono sem me preocupar se acordaria viva ou não.
[...]
Abri os olhos de volta em meu “quarto”, sentei vendo que ainda estava suja do teste de mais cedo. Dei a eles exatamente o que queriam, provei que eu era a cobaia perfeita e ainda estava viva por algum tipo de milagre louco. Levantei-me indo até o banheiro acoplado ao cômodo, retirei minhas roupas pegando novas na gaveta do armário. Entrei debaixo do chuveiro o ligando e deixando que a água caísse por minhas costas. Lavei completamente meu corpo retirando as marcas de meu sangue e do sangue do alien de minha pele. A água desceu pelo ralo com uma coloração diferente por isso.
Passei a mão por meu nariz limpando qualquer vestígio de sangue que pudesse haver ali ainda. Suspirei não demorando, apenas o suficiente para me limpar. Joguei as roupas sujas dentro de um cesto no canto do banheiro vestindo as novas. Sai penteando meus cabelos logo após lavá-los querendo tirar qualquer cheiro nojento que aquele monstro tinha no sangue.
— Você está bem? — quis saber me sentando na maca aguardando qualquer resposta do alien, tudo ficou em silêncio por longos minutos até que ele finalmente respondesse.
“Apenas preocupado com você. Mas sei que se saiu muito bem, posso sentir.”
— Foi sorte eu acho. — murmurei contente que tinha alguém para conversar, mesmo que por pensamentos. — Ainda aplicam os sedativos em você? — Perguntei um tanto curiosa.
“Sim. Agora mesmo sinto sono e sua voz me mantém ainda mais calmo.”
— Fico feliz em ouvir isso. Quer dizer... Quase. — Brinquei rindo suavemente. O alien riu de volta enviando uma onda de calor desconhecida por meu corpo. Sorri sabendo que ele havia adormecido novamente.
Lembrei-me de minha imagem naquela janela de vidro espelhado. Era eu, mas também era outra pessoa. As veias roxas desenhavam um padrão diferente em meu rosto e corpo, meus olhos estavam tão dourados quanto os do alien, eu me senti tão forte naquele momento. Como se algo tomasse conta do meu corpo me deixando poderosa.
Lembro também de partir o alien monstro ao meio apenas com meus pensamentos e minhas mãos, eu me senti bem fazendo aquilo. Não posso ser culpada porque era aquilo ou morrer sufocada por um tentáculo. Ainda sinto a sensação do poder passando por minhas mãos como correntes elétricas. Estiquei uma delas a movendo para cima conseguindo levitar um abajur localizado no outro canto do cômodo. Sorri de canto, satisfeita, pois era um começo bem proveitoso.
Continuei testando com coisas cada vez mais pesadas, até chegar o momento que levitei meu próprio corpo, fechei os olhos respirando profundamente sentindo meus pés saírem do chão mais e mais alto. Abri os olhos encarando o chão não muito longe, sorri abertamente movendo a mão bruscamente quebrando o abajur com uma facilidade tremenda.
De repente perdi minhas forças e cai no chão sentindo dores por todo meu corpo. Encostei a testa no piso tomando algumas respirações. Ainda era muito cedo, mas o avanço foi mais do que jamais pude imaginar. Eu iria sair daqui e levar aquele alien para longe. Iria deixá-lo voltar para seu planeta e fugiria para o mais longe que pudesse.
Mas por que de repente meu peito doeu apenas com o pensamento de deixá-lo ir embora e nunca mais vê-lo?

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