Descobri que gostava de música. Ao menos da música que vinha do salão, no andar inferior. Suave e ritmada, produzida por instrumentos de cordas e teclas, abafando as vozes, os passos e com sorte o plano de matar o Mestre da Cidade.
Não era propriamente um crime, como Edmon havia habilmente me explicado, Licans podiam se desafiar a qualquer momento, entretanto Ulrik não era qualquer Lican e sua fama em jogar sujo pedia que fizéssemos o mesmo.
Usar minha ainda recém descoberta habilidade para suprimir a Dominância de Ulrik no meio de uma batalha poderia muito bem acabar em desastre. Um desastre em que a adaga de prata presa em minha perna poderia estar a centímetros de decidir a vida e a morte. Não pude deixar de sentir alguma confiança brotar no meu coração por tê-la comigo.
Uma imensidão de cores tingia o salão principal, mulheres com vestidos pomposos, homens com trajes formais e lenços coloridos nos bolsos. Arandelas douradas haviam sido acessas nas paredes, conferindo um brilho quase místico ao ambiente. Os criados se revezavam transportando bebidas e pequenas porções de comida. Em uma plataforma, músicos dedilhavam seus instrumentos com uma contemplação serena em seus rostos.
- Quem são todas essas pessoas? - Sussurrei para Raymond. Não tínhamos de fato entrado no salão, estamos atrás das cortinas douradas de uma segunda porta de entrada.
- Inimigos, com sorte, aliados. - Falou, estendendo seu braço para mim. Não hesitei, com dois passos atravessamos as cortinas.
Senti minha respiração ficar presa quando os convidados, quase que ao mesmo tempo, viraram suas cabeças em nossa direção. Um pensamento louco me fez querer rir, da ultima vez que tive tantos olhares sobre mim foi no sacrifício, enquanto eu caminha para fora da vila amaldiçoando todos. Novamente usei uma mascara, deixando meu rosto adquirir uma expressão serena, como os músicos, como no dia que pensei que morreria lutando no Limite, que agarraria cada fio de oportunidade para conquistar minha liberdade.
Não precisei manter a mascara por muito tempo, as pessoas gradualmente perderam o interesse. Um homem com constituição forte e cabelos castanhos se aproximou de nós, estendendo a mão para Raymond. Por um momento pensei que fosse Ulrik, mas ele se apresentou com um nome diferente e parecia muito amigável para um Mestre da Cidade sedento de poder. Eu fui apresentada também, como 'minha belíssima noiva, Aysha', sorri para o titulo e uma pequena parte do sorriso não foi falso.
Algumas dezenas de conversas similares depois, eu ainda sorria, com uma expressão estática nos lábios. Eu não tinha grandes expectativas sobre a minha presença no baile, mas esperava mais do que ser tratada como um adereço de decoração, as pessoas que falavam com Raymond, me dedicavam breves cumprimentos e depois engatavam em uma conversa privativa com ele, sobre fronteiras, tropas e territórios, usualmente mencionado nomes de lugares que eu não conhecia. Com o mesmo interesse fervoroso passei a procurar Ulrik na multidão, eu não tinha recebido uma descrição detalhada dele, mas esperava algo marcante quando o visse, como uma espécie de aura maligna ou um olhar fixo e aterrorizante. Não o encontrei.
- Vejam só, sempre falei que os mitos que diziam que as fadas foram extintas estavam totalmente errados. - Uma voz suave e melodiosa cantarolou, atraindo minha atenção. - Acabei de encontrar uma.
- Só se for uma fada do lodo, Lian. - Uma segunda voz adicionou, com uma risadinha maldosa.
Pelos deuses, que raios eu tinha feito para merecer isso?
- Aberlian, Kohina. - Cumprimentei, como Edmon havia me ensinado, uma mesura elegante com punho cerrados, a ultima parte não estava nas aulas de Edmon. Mas era isso ou pular em Kohina, ela quase havia me matado sendo uma perdedora do pior tipo. - Vejo que ainda não morreram. - Adicionei, resistindo a minha fúria interna. Raymond sorriu, ciente do meu autocontrole ou talvez da minha piada ao imita-lo.
- Você é uma coisinha audaciosa, não é? - Kohina falou, ela usava um vestido preto, sem mangas, com correntes de pérolas que adicionavam faixas de cascata ao decote profundo e alongado terminando pouco acima do umbigo. Seus cabelos curtos estavam salpicados com um pó prateado e ornamentados com um diadema de galhos e flores metálicas. Seus lábios e unhas pintados de prata. - Vejo que se recuperou bem do nosso ultimo encontro, uma indelicadeza da minha parte, admito. Espero que possamos esquecer isso e recomeçar. - Ela sorriu.
Seeei, como se algum dia eu pudesse de fato esquecer que ela já tinha enfiado as garras na minha garganta. Lembro dos rostos de Cintia e Guilia ao verem as dezenas de machucados no meu corpo, esfoliações de quando lutei contra Turvan no covil de ossos, os leves inchaços do meu braço por Ângela tê-lo deslocado, a cicatriz do tiro de raspão que Kiros havia me dado quando tentei fugir da vila, os pequenos cortes que Kay havia tratando nas minhas mãos de quando lutei contra o ogro. Eu não tinha a cicatriz do ferimento que Kohina havia me dado, Raymond a curou, mas a lembrança fazia seu papel. Quando eu não respondi, ela se voltou para Raymond.
- Rayzinho fiquei bastante satisfeita por receber seu convite. São como os velhos tempos. - Falou, apanhando uma taça de uma das bandejas.
- Imagino que tenha vindo reclamar o que teria sido seu, em outra oportunidade. - Aberlian falou, com um sorriso de lado. - Boa sorte, Mestre Precito.
- Aproveitem o baile. - Foi tudo que Raymond falou com uma falsa condescendência, antes de tomar meu braço e nos guiar em outra direção. Olhei sobre o ombro para ver que ambos ainda nos encaravam, Aberlian piscou um dos olhos prateados para mim.
- Acho que eles sabem sobre o seu plano. - Comentei.
- Admito que não é o melhor deles.
- Então como tem certeza que vai funcionar? - Perguntei. Apesar de não comentar isso em voz alta, estava preocupada com Kay, ele tinha ido parar nas mãos do inimigo por minha causa.
- Ulrik é muito orgulhoso para recusar o convite e muito autoconfiante, ele pode suspeitar que é uma armadilha, mas não acha que vai cair nela. - Respondeu.
Como todos os Licans, minha caixinha sussurrou.
- E você o provocou. - Acrescentou. - Ele virá.
Toda minha ansiedade foi desmanchada, nenhum segundo a mais foi necessário. Como uma profecia, Ulrik Velkan, Mestre da Cidade do Norte, atravessou as portas duplas da entrada. Seus olhos encontraram os meus na multidão e eu soube que nosso plano não seria o suficiente.
Poder irradiou pelo salão, sendo lançado em ondas que faziam minha pele formigar. Ele andou até nós, ignorando os cumprimentos educados de seus servos. Sim. Essa era a única palavra apropriada para o restante de nós, eu podia ver isso em seus olhos, nas feições duras do seu rosto, na forma como seu sorriso se alongava a cada passo.
Ele não usava um traje formal, não havia nenhuma coroa em seus cabelos claros e encaracolados, invés disso, suas roupas tinham um corte rígido, com placas de ferro, uma capa esvoaçante de pelo. Eram as roupas de um general pronto para a guerra. Destoando-se de qualquer outra pessoa no salão, como se fôssemos criancinhas brincando com o guarda roupa dos pais.
- Raymond Mondavarius. - Ele pronunciou demoradamente, seus olhos sem nunca deixar os meus. - Vejo que seu tempo no exílio foi bem recompensado. E você, presumo que deva ser Aysha Nowak. - Disse para mim, tomando minha mão livre, ele fez menção de leva-la até os lábios, seus olhos finalmente deixaram meu rosto, voltando-se para Raymond.
Mas ele não beijou minha mão, usou o movimento para repentinamente me puxar até ele. Não foi um gesto elegante, mas foi efetivo, pois em seguida, diante de todos os convidados do salão, ele me beijou.
N.A: Acabei repostando, pois o wattpad, bugou os comentários :')
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Vermelho
WerewolfEscolhida como o próximo sacrifício de sua vila, Aysha terá que lidar com a enigmática figura do Lobo e com os perigos depois do Limite, a divisão do seu mundo fechado com o vasto desconhecido. Dotada com uma misteriosa voz interior que a assombra d...