Pela segunda vez no dia eu afundei. Meu corpo estava fervendo e não era pela febre. Sem ar retornei a superfície agarrando as bordas da banheira até os nós em meus dedos perderem a cor.
É tudo culpa sua, minha mente alfineta, se não tivesse recusado a ajuda dele... Não estaria jogando sal nas minhas feridas, complemento o óbvio, adicionando outro punhado branco na água turva da banheira. Por mais que o sal fosse cruel, uma infecção advinda dos cortes em meus braços poderia me matar em menos de uma semana, então aguentei firme contando os segundos enquanto via a água turva ficar rosada.
Eu poderia ter engolido meu orgulho era fato, o Lobo finalmente havia aberto a boca e me contado pelas coisas que tanto especulei, mas em contrapartida ele também havia visto mais um de meus pontos fracos. Meu constrangimento era uma arma em suas mãos e ele sabia como usar isso.
Porra, ele sabia muito bem.
Dormi por dias ou assim pareceu, apenas quando a fome e os pesadelos se tornaram insuportáveis eu acordei.
A noite era visível pelos vitrais da janela, o quarto estava envolvido pela escuridão, um convite aberto para continuar na cama, me remexi sobre as cobertas sentido as ataduras em meus braços pressionarem os cortes que eu mesma tinha tratado de forma precária.
De assalto minha memória foi tomada pela visão e covardemente pela sensação de uma língua úmida tocar meus ferimentos mais graves, os que foram curados pelo Lobo. Frustrada, praguejei até que estivesse de pé andando as cegas pelo quarto em busca da lamparina.
Tomei a direção da cozinha assim que acendi a lamparina, um brilho escasso e tremeluzente afastando as sombras da casa. Hesitei por um minuto a passar pela abertura que levava ao andar subterrâneo, ainda escondida sob a velha cortina, resisti ao impulso de puxa-la e continuei meu trajeto pelo corredor.
Quando retornei dos túneis, ensopada dos pés a cabeça, com tremores que não eram apenas do frio pensei em bloquear a abertura, mas o esforço era inútil, nem mesmo uma porta de ferro maciço tinha os impedido.
A cozinha estava vazia, abandonada por falta de palavra melhor, eu já tinha a examinado quando procurei pelo sal. No entanto, com meu estomago vazio, pela primeira vez me perguntei de onde vinha à comida que Kay trazia e se ele estava bem depois de tudo que aconteceu no salão de ossos.
Meu estomago voltou a se contorcer. Era como a fome dos dias frios, de quando a terra ficava dura e a maioria das ervas nutricionais e medicinais desapareciam, de quando eu não tinha moedas o suficiente para comprar comida ou de quando o mercado ficava esgotado.
- Mulher tola e teimosa, case-se comigo, terá o meu amor e uma mesa farta. – Dizia Kiros, certa vez, caminhando ao meu lado pelo centro comercial vazio da vila, eu o ignorava fervorosamente. – Prefere morrer de fome? Sabe que não vai encontrar mais que um punhado de cereais e pães duros e não é o suficiente para passar o inverno. – Esbravejou.- As pessoas vivem juntas porque precisam umas das outras.
- Porque precisam uma das outras, não porque se amam.
Pessoas que amam não jogam umas as outras para bestas famintas.
Tentei encolher a amargura, mas novamente era inútil. Não havia comida. Não havia segurança. Não havia escapatória. Desmoronei, cansada de esconder meus sentimentos. Na casa vazia, não havia ninguém que pudesse ouvir meus soluços descontrolados, assim como não houvera ninguém nos últimos sete anos.
Chorei pela minha condição patética, chorei por meus ferimentos e dúvidas, estava assustada, pelo inferno inteiro, como estava assustada! Tinha evitado pensar no assunto por dias, feito bravatas e promessas corajosas, mas no fundo sabia da verdade, não havia como voltar atrás, estava presa ao Lobo. E provavelmente morreria por sua causa. Quanto tempo demoraria a me jogar em outra disputa? Quanto tempo meu corpo aguentaria a exaustão? Quanto tempo minha mente permaneceria sã? Não muito. A voz em minha cabeça respondeu.
Desista de uma vez, assim como ela fez. Eu a guiarei, o mataremos, mataremos todos eles.
- Não. – Sussurrei, para aquele monstro familiar, aquela voz maldosa que morava na caixinha em meu peito e atormentava meus pensamentos. Ela não se calou. Continuou soando em meus ouvidos por horas, cochichando coisas cruéis, cochichando meus erros e segredos. Então ela cometeu seu erro enquanto revisava minhas memórias. Citou as palavras dele, as palavras que ocultei da minha mente na falha tentativa de esquecer o que aconteceu depois.
"Não há problemas em fraquejar, florzinha. Até a mais forte das pedras se movimenta em um terremoto...
...fique aqui, o papai já volta."– Terminou, preparando-se para narrar os momentos seguintes. Eu a impedi, tinha conseguido minha motivação. Esqueça, nunca a usarei novamente, falei de volta, recuperando minha razão. Ela não protestou, voltou a ficar imóvel em meu peito, não tinha se dado por vencida, mas sabia que não arrancaria mais nada naquele momento.
Levantei, resistindo ao impulso de secar meus olhos nas agora muito empoeiradas ataduras. Havia escorregado até o chão em meu momento de fraqueza, o vestido azul em que tinha me colocado deveria estar sujo, mas eu não me preocupei em tentar limpa-lo.
Sem perder meu recém adquirido ânimo, voltei a vasculhar a dispensa empanturrada com utensílios antigos, barris meio cheios com algo azedo e caixotes vazios, haviam outros objetos, revelados até onde a luz da lamparina os alcançava, sorri quando encontrei algo familiar, como nos dias frios...
***
Horas depois estava observando o nascer do sol abafado pelas nuvens escuras. Deitada na grama alta, escondida a espera de um ou dois peludos curiosos adentrarem na armadilha. Para meu azar a toca continuava vazia, seu dono não retornara, talvez estivesse no estomago de outro predador...o pensamento gelou minha pele por um minuto, mesma que a casa ainda fosse visível, eu havia me distanciado mais do que gostaria. Mas o terror logo se dissipou, assim que senti o fio em meus dedos agitar. Comida.
Cantarolei voltando para a casa a passos alegres. O verdadeiro estado da cozinha tinha se revelado por completo, mas eu não me importei em limpar, nem de recolher as cinzas e trocar a lenha do fogão, gastei horas até finalmente atiçar o fogo. Enchi um caldeirão de ferro com a água do poço. Cortei e cozinhei. Jogando o restante da erva doce e dos cogumelos que havia usado para atrair o coelho na carne que agora se dissolvia pelo calor.
Quando enfim tomei a primeira colherada da suculenta carne senti que todo meu esforço havia sido recompensado. Fugir dos problemas não me levaria a lugar algum, desistir não era uma opção e acima de tudo, fraquejar não era um problema desde que eu me levantasse novamente.
E eu havia me levantado, alguma parte do meu coração ficou satisfeita com isso.
***
Quando as cestas continuaram desaparecidas e meu estomago se tornou insaciável, eu decidi descer. Havia algo errado. Meus dedos tremeram a segurar a tapeçaria envelhecida que levava ao sombrio corredor subterrâneo, mas eu não me arriscaria a levar a única lamparina que tinha encontrado na casa, então eu desci, encarando a escuridão com a certeza que ela fazia o mesmo.
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Vermelho
Manusia SerigalaEscolhida como o próximo sacrifício de sua vila, Aysha terá que lidar com a enigmática figura do Lobo e com os perigos depois do Limite, a divisão do seu mundo fechado com o vasto desconhecido. Dotada com uma misteriosa voz interior que a assombra d...