Naila Dormam olhava para mim de olhos bem abertos, ela fazia o melhor que podia para se revezar entre me olhar e olhar para o lobo que a cercava. E não era um simples lobo, era o Lobo. Eu sentia isso no ar, na minha pele, nos olhos em choque de Naila e completamente na forma daquela criatura. Era imenso como um cavalo jovem, talvez maior. A pelagem era tão negra quanto à cor dos meus cabelos e os olhos... Nunca havia visto olhos como aqueles, eram dourados como brasas e pareciam ter vida própria. O inferno poderia dançar neles e eu ainda acharia belo.
Eles me olhavam agora e eu daria qualquer coisa do mundo para não os ver novamente.
O Lobo saltou sobre Naila, não em cima dela, apenas passou sobre ela aterrissando no chão sem o mínimo ruído. Era impossível algo tão grande se mover sem fazer barulho, mas ele conseguia. Sangue escuro gotejava por sua mandíbula molhando o pelo negro, eu poderia abraçar aquele pescoço com os dois braços e testar se o pelo parecia tão macio e liso como aparentava. Minha pele formigava e havia um gosto ruim em minha boca.
Parei de andar.
Não tinha notado que o fazia até o Lobo estar tão próximo que se levantasse o braço poderia o tocar. Sem pensar duas vezes levantei meu braço. A faca cortou, sangue banhava meus dedos levando um pouco de calor a eles. Não me atrevi a tirar os olhos do Lobo, mesmo depois que o cortei seus olhos infernais continuavam em mim. Porque você não me ataca? Era o que eu queria perguntar e talvez as palavras tivessem soado em voz alta porque tão claramente a resposta estava em seus olhos animalescos. Ainda não, quem sabe em breve.
Por fim ele se afastou, minha faca caiu no chão, junto com todas minhas esperanças de permanecer viva. Eu aguardei, aguardei seu ataque, a sensação de suas garras perfurando minha pele e de seus dentes quebrando meu pescoço. Mas de novo aquela resposta foi soprada em minha mente. Ainda não.
Lentamente ele continuou a se afastar, até finalmente me dar as costas e desaparecer entre ás árvores. Só depois disso eu podia me mover novamente, podia desabar no chão e vomitar todo o pânico e medo em meu corpo. Foi o que fiz.
Kiros tinha me abandonado. Eu fiquei surpresa. Que tola.
Metade do braço esquerdo de Naila estava arruinado e quando digo arruinado quero dizer despedaçado. Eu havia improvisado um torniquete no que restou do seu braço, era o melhor que podia fazer. Não seria o suficiente para a manter viva, mas já era um começo. Ela não havia falado nada e eu não havia perguntado. Seria muito mal gosto perguntar se ela estava bem com metade de seu braço ausente, olhando pelo lado positivo ela tinha acabado de se tornar uma Ilegível. Infernos. Eu preferia ter ficado com o braço.
A chuva tinha parado e o céu brilhava enquanto eu apoiava Naila contra meu corpo e nos levava de volta a vila. Eu tentava não olhar para os membros decepados quando passamos por eles. Minha cota de coisas macabras para sonhar já estava cheia. O vômito tinha substituído o gosto estranho de minha boca por...bem, vômito, mas eu ainda conseguia sentir minha pele arrepiada e se possível olhos atrás de mim. A trilha parecia bem mais distante do que eu me recordava e por um momento pensei que estivéssemos perdidas, foi quando avistei o portão.
- Estamos quase chegando Naila. – Falei. Mesmo pequena o peso de Naila pressionava meu corpo para baixo, se ela perdesse a consciência não conseguiria nos arrastar até o portão. Eu era mais alta que a maioria das garotas, mas isso não fazia mais forte. Senti Naila acenar com a cabeça em meu ombro. Ela estava chorando baixinho, quase que com medo de que se chorasse alto atrairia os monstros. Talvez ela estivesse certa de chorar baixo.
- Abram! – Gritei quando chegamos ao portão, nenhum movimento visível pelas barras. Nenhum sinal de Baran ou Laurent.
Sentei Naila no chão, ela arfou, o pânico e o choque sem nunca ter deixado seus olhos castanhos, olhos de corsa. Como ela tinha conseguido passar pelo Limite? Ela não podia ter escalado usando um vestido e de todo modo ela parecia delicada e inofensiva de mais para tentar algo assim. Se eu tivesse feito uma aposta de quem teria escapado, Naila poderia ser muito bem o último nome da minha lista.
Agarrei as barras do portão e puxei, para minha surpresa o portão cedeu. Não havia ninguém de guarda.
Me voltei para Naila. Seu sangue havia manchado o comprimento do meu casaco, minhas mãos era uma confusão de lama e sangue, eu tinha levantado meu capuz e minha faca pendia ainda manchada com o sangue do lobo em minha cintura. Aquela maldita sensação do sangue em meus dedos, do roçar dos pelos em minha mão me atormentou. Abotoei o casaco escondendo a faca. Naila não estava muito melhor, a manga do seu vestido tinha sido levada com o braço, lama manchava o seu rosto e mãos, tinha lama em seu cabelo loiro também. A última coisa que precisávamos era de histeria coletiva por nossas aparências.
Ethan Inges era um bom homem, era para ele que você iria se tivesse um corte maior de três polegadas ou uma perna fraturada. Menos que isso você não precisaria dele, maior que isso ele não poderia ajudar, ninguém poderia. Eu me senti mal por largar Naila com ele, não por ela, mas por ele.
Simplesmente não aguentei ficar quando vi ele desfazer o torniquete e subir um pouco do que restava do tecido da manga do vestido de Naila, a carne pendia irregular e o osso estava exposto. Eu apostaria pela cara pálida de Ethan que ele nunca tinha visto um ferimento como aquele, pelo menos não em vivos. Ele iria precisar serrar o osso e cauterizar o restante. Algumas boas pessoas tinham ido avisar para a família de Naila que ela estava viva, seu pai e seu irmão mais velho pareciam genuinamente chocados quando souberam de sua tentativa de fuga. Eles deixaram Ethan trabalhar, talvez também tivessem o estomago fraco.
Eu havia pedido uma bacia com água limpa a Ethan, afinal as pessoas costumam não confiar em você quando a sangue em suas mãos. Eu as lavei, agradeci e sai o deixando com todo trabalho pesado. Ethan não havia me perguntado o que tinha feito aquele ferimento em Naila, nós dois sabíamos o que tinha feito. E não era o Lobo, era uma das coisas pelas quais pagávamos a base dos sacrifícios para ficarmos seguros.
Quando conferi que minha aparência não estava tão detestável, me apressei pela estrada bifurcada que levava a Comuna, ás provas que eu precisava estavam nos ferimentos de Naila, o conselho teria que engolir derrubando suas portas e impedindo que o sacrifício fosse antecipado. Eu só precisava de mais alguns dias até que outra carroça de uma vila vizinha viesse trocar seus produtos, então eu fugiria escondida nela, até outra vila.
Mas infelizmente meus planos foram adiados pela multidão que seguia pela outra bifurcação da estrada, a que levava aos pomares. Então acabei indo parar lá também pela curiosidade e entendi malditamente bem porque as pessoas corriam agitadas. Eu não teria acreditado se alguém tivesse me contado. Mas bem, tinha visto o Lobo e saído viva, ilesa. Isso era algo para se admirar e expandir as possibilidades. Talvez eu tivesse acreditado afinal.
Eu pisquei, olhei novamente e pisquei para a cena a minha frente. As macieiras estavam mortas. Simples e assombrosamente assim. Todo o verde, vermelho e marrom tinha si perdido, e onde havia vida só tinha sobrado galhos secos e enegrecidos. As pessoas estavam se ajoelhando perto das árvores, entre elas. Estavam se ajoelhando e rezando com mãos para os céus.
A besta tinha reclamado sua graça.
E aculpa só podia ser minha, afinal seu sangue ainda estava sob minhas unhas.
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Vermelho
WerewolfEscolhida como o próximo sacrifício de sua vila, Aysha terá que lidar com a enigmática figura do Lobo e com os perigos depois do Limite, a divisão do seu mundo fechado com o vasto desconhecido. Dotada com uma misteriosa voz interior que a assombra d...