XXI

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A noite, quando os dois estavam enroscados na cama, Clara tinha a cabeça encostada no peito nu do marido e fazia carinho em sua penugem peitoral.

- Tenho medo de Antônio. - ela deu voz aos seus pensamentos sombrios.

Gabriel tocou levemente seu queixo para que ela pudesse encará-lo.

- Ele não lhe fará mal algum.

- Não tenho medo por mim, Gabriel, mas por ti. Se algo te acontece... - o medo era tanto que Clara calou-se.

- Antônio Simas não fará nada contra mim porque é um covarde, meu amor. Ele só faz o que faz com quem não pode se defender, como os seus escravos, e só faz isso porque tem seus capangas para protegê-lo.

Ele deu um beijo carinhoso na testa dela e Clara voltou a encostar no peito dele.

- Não vamos mais perder tempo falando daquele ser desagradável. Esqueci de falar-lhe, logo cedo recebi uma mensagem de Carlos. - ela levantou a cabeça para encará-lo. - Ele e Analice nos convidaram a passar alguns dias em sua casa.

- Passar alguns dias na sua fazenda? - ela perguntou, estranhando.

- Não. Em sua casa na cidade, no bairro do Bom Retiro. Ao contrário de mim, Carlos gosta da vida na cidade e mantém um palacete lá. -ela assentiu. - Essa semana terão apresentações no Theatro São José.

- Apresentações? - perguntou, curiosa e empolgada.

- Sim. Ópera e concerto musical. Creio que são artistas da Itália. Gostaria de ir?

- Adoraria. - disse sorrindo com os olhos brilhando de empolgação. - Nunca fui a nenhuma ópera ou concerto. Bem, apenas aos concertos da igreja, mas acho que não é a mesma coisa.

- Creio que não, mas não posso dizer com exatidão. Nunca fui um assíduo frequentador da igreja. - ambos riram.

Clara o beijou de leve nos lábios.

- Hoje você disse ao padre João que me amava mais que tudo no mundo. Meu coração quase explodiu de tanta felicidade.

Ele sorriu e tirou uma mecha de cabelo que estava lhe cobrindo os lindos olhos.

- E já não sabias disso? - ela sorriu.

- Já. Mas mesmo assim adorei ouvir. 

- Sabe, Clara, eu nasci rico. Privilegiado por ser branco. Num país onde a pobreza sempre imperou. Onde a escravidão é normalmente aceita. Não me lembro de um só momento em minha vida em que eu tenha desejado algo e não conseguido. Eu não me importava com nada e nem ninguém além de mim mesmo. - ela o olhava com bastante atenção, absorvendo tudo o que ele lhe falava. -  É fácil você se acostumar com a riqueza e talvez por isso, não valorizá-la. O que quer que o dinheiro pudesse comprar, eu possuiria com um estalar de dedos. 

Gabriel sorriu como se estivesse envergonhado por ter nascido cheio de privilégios.

- Privilégios era algo garantido, algo comum no meu dia a dia. Um homem branco e rico que tinha só um objetivo na vida: usufruir ao máximo da minha vida privilegiada. Só depois que eu tive o rosto desfigurado e decidi vir morar na fazenda, eu consegui de fato enxergar a crueldade com que pessoas de cor são tratadas. Por que eu não vi isso a minha vida toda? Meu pai é um escravocrata repulsivo. Exatamente por isso eu sempre disse a você que não era um homem bom. Sabe, Clara? Eu só vi a dor do negro quando eu passei a sentir a minha própria dor. Eu fui rejeitado não pela cor da minha pela, mas pelo meu rosto desfigurado. Eu não era chamado de negro maldito, eu era chamado de monstro.

Era uma vez... a Bela que Salvou a Fera (em FINALIZADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora