A noite, quando os dois estavam enroscados na cama, Clara tinha a cabeça encostada no peito nu do marido e fazia carinho em sua penugem peitoral.
- Tenho medo de Antônio. - ela deu voz aos seus pensamentos sombrios.
Gabriel tocou levemente seu queixo para que ela pudesse encará-lo.
- Ele não lhe fará mal algum.
- Não tenho medo por mim, Gabriel, mas por ti. Se algo te acontece... - o medo era tanto que Clara calou-se.
- Antônio Simas não fará nada contra mim porque é um covarde, meu amor. Ele só faz o que faz com quem não pode se defender, como os seus escravos, e só faz isso porque tem seus capangas para protegê-lo.
Ele deu um beijo carinhoso na testa dela e Clara voltou a encostar no peito dele.
- Não vamos mais perder tempo falando daquele ser desagradável. Esqueci de falar-lhe, logo cedo recebi uma mensagem de Carlos. - ela levantou a cabeça para encará-lo. - Ele e Analice nos convidaram a passar alguns dias em sua casa.
- Passar alguns dias na sua fazenda? - ela perguntou, estranhando.
- Não. Em sua casa na cidade, no bairro do Bom Retiro. Ao contrário de mim, Carlos gosta da vida na cidade e mantém um palacete lá. -ela assentiu. - Essa semana terão apresentações no Theatro São José.
- Apresentações? - perguntou, curiosa e empolgada.
- Sim. Ópera e concerto musical. Creio que são artistas da Itália. Gostaria de ir?
- Adoraria. - disse sorrindo com os olhos brilhando de empolgação. - Nunca fui a nenhuma ópera ou concerto. Bem, apenas aos concertos da igreja, mas acho que não é a mesma coisa.
- Creio que não, mas não posso dizer com exatidão. Nunca fui um assíduo frequentador da igreja. - ambos riram.
Clara o beijou de leve nos lábios.
- Hoje você disse ao padre João que me amava mais que tudo no mundo. Meu coração quase explodiu de tanta felicidade.
Ele sorriu e tirou uma mecha de cabelo que estava lhe cobrindo os lindos olhos.
- E já não sabias disso? - ela sorriu.
- Já. Mas mesmo assim adorei ouvir.
- Sabe, Clara, eu nasci rico. Privilegiado por ser branco. Num país onde a pobreza sempre imperou. Onde a escravidão é normalmente aceita. Não me lembro de um só momento em minha vida em que eu tenha desejado algo e não conseguido. Eu não me importava com nada e nem ninguém além de mim mesmo. - ela o olhava com bastante atenção, absorvendo tudo o que ele lhe falava. - É fácil você se acostumar com a riqueza e talvez por isso, não valorizá-la. O que quer que o dinheiro pudesse comprar, eu possuiria com um estalar de dedos.
Gabriel sorriu como se estivesse envergonhado por ter nascido cheio de privilégios.
- Privilégios era algo garantido, algo comum no meu dia a dia. Um homem branco e rico que tinha só um objetivo na vida: usufruir ao máximo da minha vida privilegiada. Só depois que eu tive o rosto desfigurado e decidi vir morar na fazenda, eu consegui de fato enxergar a crueldade com que pessoas de cor são tratadas. Por que eu não vi isso a minha vida toda? Meu pai é um escravocrata repulsivo. Exatamente por isso eu sempre disse a você que não era um homem bom. Sabe, Clara? Eu só vi a dor do negro quando eu passei a sentir a minha própria dor. Eu fui rejeitado não pela cor da minha pela, mas pelo meu rosto desfigurado. Eu não era chamado de negro maldito, eu era chamado de monstro.
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Era uma vez... a Bela que Salvou a Fera (em FINALIZADO)
RomanceÉ 1876. Seis anos após a Guerra do Paraguai, Gabriel regressou da guerra com parte do rosto desfigurado. Ele afastou a todos e vive recluso em suas terras por achar-se um monstro, uma fera. Mas isso está prestes a mudar com a chegada da doce e bela...