IV

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- O que você é desse homem, Clara? - ele perguntou.

De todos os Simas, Gabriel tinha pegado antipatia no exato momento em que o caminho de Antônio e o dele tinham se cruzado pela primeira vez há muito tempo. Antes da guerra. Conhcecê-lo só confirmou o que Gabriel já presumia. Antônio Simas era um homem rico que se sentia superior aos demais, um escravocrata repulsivo.

Gabriel viu uma guerra travada no olhar de Clara, ela realmente temia Antônio Simas. O que o desgraçado fizera com aquele anjo? Ele sentiu que podia matá-lo com as próprias mãos se ele tivesse ousado fazer algum mal a ela.

- Reitero o que eu disse, Clara: Eu não vou deixá-lo fazer mal algum a você.

- Eu confio em você, senhor Braga. Mas temo que ele faça algum mal a você por minha culpa. Se ele souber que estou aqui. - ela se levantou e foi para perto da janela.

A escuridão tomava a fazenda. As estrelas brilhavam no céu como diamantes e ela sentiu paz. Clara pensou que poderia viver a vida inteira ali, naquela paz que preenchia a sua alma. Com Gabriel que a fazia acreditar que homens também podiam ser bons. Que homens podiam pensar diferente e entender que todas as pessoas foram criadas à imagem e semelhança de Deus. Gabriel se levantou e foi até a janela.

- O senhor acredita em Deus? - ela perguntou pegando-o desprevenido. Clara mudou completamente de assunto. Ela queria fugir da pergunta que Gabriel lhe fizera. Ele deixaria passar naquele momento.

- Não sei. Acho que não.

Ela olhou para ele, incrédula.

- Como não? Você é a prova viva de que Deus existe.

Ele riu, mas sem o mínimo humor.

- Como um monstro como eu pode ser a prova de que Deus existe, Clara? Acho que você ainda não se recuperou completamente da sua febre.

- Eu me recuperei totalmente graças a Dada e ao senhor. - ela disse rapidamente. - E o senhor não é um monstro. É o melhor homem que já conheci.

Aquelas palavras tocaram mais Gabriel do que ele queria.  Clara voltou a olhar o céu estrelado.

- Um dia meu pai também foi um homem bom, mas a morte de minha mãe fez com que ele mudasse completamente. - ela disse cheia de pesar. - Ele não aguenta nem me olhar. Acho que porque me pareço com ela. 

- Ela devia ser linda, então. - ele disse sem pensar e se arrependeu no mesmo instante, mas já era tarde, as palavras já tinham saído. 

Clara olhou pra ele e sorriu, mas era um sorriso triste.

- Meu pai casou com uma mulher horrorosa algum tempo depois que minha mãe se foi. E ela o convenceu a me casar com o seu sobrinho.

- Antônio Simas. - ele afirmou, mas ela assentiu.

O coração de Gabriel comprimiu no peito. Ela era casada. Casada com aquele canalha, sórdido, patife Antônio Simas. Ele era indigno dela.

- Ele começou a me cortejar. - ela voltou seu olhar para além da janela, sem enxergar mais nada de fato. A vergonha tomava conta do seu ser, mas ela precisava contar a ele com que estava se metendo ao ajudá-la. - Ele foi gentil e um verdadeiro cavalheiro. Aceitei, então, me casar. - ela sorriu sem humor. - Aceitar não é a palavra. Eu me resignei, afinal, uma mulher tem que obedecer cegamente ao pai e depois ao marido.

Desde que conseguia se lembrar, Clara sempre quis ser um homem, apreciar as
liberdades que ser um homem trás. Era o dever de uma mulher viver na sombra dos homens.Ela conhecia essa verdade desgraçada e entendia suas implicações muito bem. Clara queria poder fazer o que bem entendesse sem precisar dar satisfação a ninguém, mas quis Deus que ela nascesse mulher. Ela encarou Gabriel.


- Mas eu fugi no dia do meu casamento. - Gabriel estreitou os olhos e esperou. - Um dia, quando eu era criança, eu vi um gato e uma gata. - Gabriel não entendeu a mudança drástica de assunto, mas esperou. - O gato subiu em cima da pobre gata e os miados de dor dela eram tão altos que eu fui socorrê-la. O gato me arranhou. A minha ama me explicou que era daquela forma que se faziam gatinhos. Por isso eu fugi do Antônio.

Bom Deus! Ela fugiu porque tinha medo da noite de núpcias.

- No dia do nosso casamento, eu o vi em cima de uma escrava. - as lágrimas dela vieram silenciosas, mas cheias de dor. - Ela chorava em profundo desespero e ele ria em escárnio. Seus capangas seguravam um escravo e ele gritava para Antônio soltar a moça, mas quanto mais ele pedia, mais Antônio ria. Ele disse: é isso que eu faço com a puta da sua mulher se você ousar desobedecer novamente, seu escravo de merda. Depois mato você e ela. 

As lágrimas dela se tornaram abundantes. Seus olhos transpareciam dor e desespero.  Gabriel não se conteve e abraçou-a. Clara aceitou o abraço. Ela chorava compulsivamente.

- Ele a machucava e se divertia fazendo isso. - ela disse com uma voz estrangulada.

- Calma, já passou.

Ele tentava acalmá-la falando palavras de conforto e apertava-a em seus braços. Gabriel a queria em seus braços para sempre. Mas como uma mulher tão bela, por dentro e por fora, seria capaz de amar um monstro?





Era uma vez... a Bela que Salvou a Fera (em FINALIZADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora