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Clara o olhou encabulada e se afastou de seus braços. Gabriel sentiu a sua ausência, queria apertá-la em seus braços para sempre. Queria que o tempo fosse apenas uma ilusão e os dois ficassem estagnados ali naquele momento. 

- Eu precisava contar ao senhor porque fugi dele. - ela disse, ainda apavorada. - Ele é mal. Cruel. Desumano. Mas você é bom. Ajudou-me sem nem me conhecer e agora eu temo por sua vida.

- Não precisa temer, Clara. Eu conheço bem Antônio Simas. - ela arregalou os olhos. - Eu sei lidar com pessoas como ele. E você pode ter certeza que ele não lhe fará mal algum. Eu a protegerei. - nem que pra isso dependesse a própria vida. - Mas eu preciso saber ainda de mais uma coisa. - ela assentiu e esperou. - Você está legalmente ligada a ele? - Clara franziu o cenho e Gabriel percebeu que teria que ser mais específico. - Você chegou a se casar com ele?

- Não. - respondeu rapidamente. - Fugi antes de me casar.

- Graças a Deus. - ele disse sem pensar e Clara sorriu.

Aquele sorriso era simplesmente perfeito aos olhos de Gabriel. Mesmo com o rosto inchado de tanto chorar, o sorriso pareceu-lhe radiante. Clara era mesmo um anjo em forma de gente.

- Então você acredita em Deus afinal.

- Deus me abandonou há muito tempo. - disse cheio de pesar.

- Claro que não. Deus está em você, senhor Braga. Só um homem bom ajudaria uma pessoa sem conhecer. Só um homem bom alforriaria escravos.

- Eles me pagam pela alforria. - disse quase se defendendo, como se não quisesse aceitar que era, de fato, um homem bom.

- Posso não conhecer muito das coisas, senhor Braga, mas sei que comprar uma alforria é muito caro. Tenho certeza que o senhor cobra apenas um valor simbólico. Não estou certa? - perguntou com aquele lindo sorriso nos lábios.

Ele ficou abismado como ela conseguira chegar a essa conclusão. Mas, definitivamente, ele não era uma pessoa boa. Nunca fora. Nem antes da guerra, muito menos depois dela. Ele apenas se considerava um homem justo.

- Você gostaria de ir até a casa de sua tia amanhã? - ele mudou de assunto. - Dada me disse que seus pés já estão curados.

O sorriso dela se desfez. Ela queria ir pra casa da tia, mas ao mesmo tempo não queria ficar longe daquela adorável desconhecido. Daquele homem que era tão especial e que não conseguia se enxergar assim.

- Eu não tive o prazer de conhecer a sua fazenda. O senhor me aguentaria por mais um dia?

Aguentar? Um dia? Ele a queria por uma vida inteira. E aquilo seria puro deleite. Mas ele era repulsivo, lembrou a si mesmo.

- Eu ficaria honrado em lhe mostrar a fazenda.

- Obrigada, senhor Braga. Por tudo. Acho que agora vou me recolher. - ele assentiu. - Boa noite.

- Boa noite, Clara.

Ele ficou ali, parado, pensando em como seria ter aquele anjo em sua cama todas as noites.

Clara entrou no quarto apressada. Seu coração rebombava no peito. Nunca fora tão ousada com homem nenhum. Nem mesmo com Antônio que era seu noivo. Ela se oferecera descaradamente pra ficar mais tempo na casa do seu salvador. Sim, ele, certamente, entenderia que ela só lhe estava grata. E aquela era a mais pura verdade. Não, não era só isso. Ela queria a companhia dele. Por Deus, que ele não tenha percebido, pediu em oração. 

Ela sentou-se na cama e ficou pensando em Gabriel. Obviamente ele se ressentia com Deus por ter sido machucado na guerra e isso ter trazido aquelas cicatrizes. O lado machucado de seu rosto chamava atenção, é claro. Mas não era assim hediondo quando seus olhos diziam que ele achava. Sua aparência era torturada e raivosa, com teias de cicatrizes passando por sua têmpora até perto de sua boca. Aquilo não lhe tirava a beleza. Ele era bonito no modo impetuoso e intransigente. Clara, em nenhum momento, achou sua aparência assustadora, embora não pudesse negar que era surpreendente. Impressionante. Ele foi impressionante. A forma como ele falou que a protegeria fez seu coração ficar acalentado. Não se sentia protegida assim há muito tempo. 

Dada entrou no quarto e a pegou com um olhar sonhador.

- O que a menina tanto sonha aí? - Clara assustou-se, não havia notada a presença da anciã.

Clara sorriu, tentando disfarçar.

- Amanhã o senhor Braga me levará para conhecer a fazenda.

- Então a menina não vai embora amanhã. - não foi uma pergunta, mas mesmo assim Clara negou.

- Vou embora depois de amanhã. - falou um tanto tristonha.

Dada percebeu, mas nada comentou.

- Venha, menina, que lhe ajudou a tirar esse vestido.

As duas ainda ficaram conversando um tempo até que Clara adormeceu. Dada sorriu e saiu do quarto. Foi até a sala-de-estar, mas seu sinhozinho não estava lá, então seguiu até o seu escritório. Bateu na porta e escutou um "entre". Gabriel estava sentado na poltrona que dava pra janela com um copo de conhaque na mão.

- A menina me disse que não vai embora amanhã. - disse ela se aproximando dele, ficando de frente para Gabriel.

- Não. - tomou mais um gole de sua bebida. - Ela vai depois de amanhã. Eu mesma a levarei.

- Por que o sinhozinho não a deixa ficar pra sempre? - ele franziu o cenho.- Não me olhe assim. - repreendeu o rapaz de maneira carinhosa. - Sou velha, mas entendo muito bem das coisas. Eu vejo como você a olha.

- Creio que seus olhos estejam piores conforme a idade. Está vendo coisa que não existe. Ou será a sua cabeça que não está muito bem? - ela rolou os olhos. - Preciso urgentemente chamar o médico para lhe examinar.

- O sinhozinho é que não tá bem. Não vê que Deus colocou um anjo em seu caminho? E o sinhozinho ainda quer mandar ela embora?

- Não a estou mandando embora, Dada. Ela quer ir. - disse se levantando. - Está muito calor, não é mesmo? - perguntou retoricamente. - Preciso de um banho de cachoeira. - colocou o copo em sua mesa.

- Está louco? O sinhozinho vai pegar uma constipação se for se banha uma hora dessas.

Ele se aproximou o deu-lhe um beijo no rosto.

- Vá dormir, Dada, já passou da hora de senhoras da sua idade estarem na cama.

Disse isso e saiu de seu escritório. Dada ainda ficou resmungando o quanto ele era irresponsável, mas Gabriel já estava longe.

Gabriel pegou seu cavalo e saiu em direção a sua cachoeira, seu paraíso na Terra. Seu esconderijo. Seu reduto. Ele tirou a roupa e mergulhou. Precisava apagar o fogo que sentia por Clara. Há exatos seis anos não se deitava com nenhuma mulher. E nenhuma mulher o fizera querer isso depois daquela maldita guerra. Mas Clara era diferente. Aquele sorriso perfeito, aqueles olhos verdes profundos, aquele coração inocente. Era um anjo sem asas, mas ao mesmo tempo uma mulher que permeava seus seus sonhos desde que chegara à sua fazenda. Ele se sentia completamente perdido. Talvez se ela fosse embora, aqueles sentimentos conflitantes também fossem.

Era uma vez... a Bela que Salvou a Fera (em FINALIZADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora