Capítulo I

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"Faremos isso juntos. Você e eu bem no topo, livres, como todos os outros."

Tom recordava a sensação reconfortante que a carícia em seu cabelo causou, junto dessa promessa dita com um sorriso tão sincero e esperançoso de Myrtle. Ela sempre repetia isso ao fim de cada sessão de horas de conversa durante a madrugada, escondidos debaixo de um cobertor que somente por um milagre nunca pegou fogo, considerando que ela sempre se encarregava de segurar e tinha um péssimo hábito de falar gesticulando demais, falando sobre as coisas que Tom tinha aprendido sobre alguns bruxos que visitavam o orfanato Wool para avaliar ou já fechar a compra, ele sempre foi muito melhor em ler as pessoas, isso garantiu ter sobrevivido sem ser comprado desde sua chegada ao orfanato, cinco anos atrás.

Apenas precisavam aguentar mais um pouco, era de senso comum que nenhuma criança seria comprada após completar catorze anos, era velha demais para ser disciplinada e exigia mais recursos logo de cara, não era vantajoso. Myrtle apenas precisava ter aguentado mais quatro anos. Se aguentasse apenas um dia, Tom teria descoberto um jeito de burlar aquele imprevisto, mas ela não esperou, na primeira situação desvantajosa, o abandonou.

A rua estava inviável de ter qualquer movimentação, os carros davam ré para pegarem outra rota, porque o aglomerado de pessoas impedia que transitassem e ninguém estava disposto a perder a chance de ver de perto aquela tragédia. Tom recuou um passo quando percebeu que o sangue tinha chegado na sola do seu sapato, mal piscava, também não chorava, não sabia se deveria chorar sendo que estava tão irritado e ao mesmo tempo se sentindo tão vazio, porque fora abandonado. Essa era a única definição que encontrou para aquela atitude estúpida, um abandono covarde. Ela só precisava ter esperado um maldito dia.

─── O que aconteceu aqui?

A voz chamou sua atenção. Virando o rosto na direção da origem do som, viu um bruxo de vinte anos, a aparência era bela, como de quase todos os bruxos da alta sociedade – acreditava que os séculos de casamentos incestuosos afinal tinham alguma vantagem -, olhos azuis, cabelo dourado, devia ter pelo menos um e oitenta de altura, como um maldito príncipe escandinavo. Sabia bem quem era aquele homem, era o responsável por toda aquela sujeira.

─── Sr. Rosier! ── a matrona exclamou com uma voz tão macia e bajuladora que causava náusea no garoto ── Bem, Myrtle Warren se jogou do telhado enquanto todos tomavam o café da manhã. Uma perda e tanto, pagaram uma fortuna por ela, teremos que fazer o reembolso.

─── Qual família a comprou? Posso enviar outra como uma cortesia pelo imprevisto, uma doação.

─── Oh não, senhor! ── a mulher inclinou mais para sussurrar as palavras seguintes, não dava para ouvir, mas dava para ver seus lábios se moverem eloquentemente. ── ela foi comprada pelo Aquarium.

Um prostíbulo de luxo, fornecia desde as melhores garotas – crianças, Tom repudiou ao lembrar a faixa etária das "mercadorias". Atingir a idade adulta naquele lugar era raro e, francamente, boa parte dizia ser apenas uma sina viver tanto – até serviços personalizados para os "amantes do incomum", ou pedófilos fetichistas asquerosos, como qualquer um que tivesse um pingo de bom senso preferia falar.

Perseus olhou com uma surpresa desprezível para o rosto de Myrtle – que realmente não atendia aos padrões estéticos dos prostíbulos –, se qualquer outra pessoa tivesse dito a ele aquelas mesmas palavras, ele teria rido e tratado como uma piada maldosa, mas a matrona nunca mentia, tratava com seriedade seu trabalho.

─── Um cliente encomendou, dividiu o valor da compra inclusive. Era para serviços especiais.

─── Gosto é gosto.

Tom engoliu uma bola amarga de rancor e ódio ao ouvir aquelas três palavras. Começou a ficar difícil ouvir a conversa, mas era óbvio que Perseus não estava feliz com o ocorrido, teria muito trabalho para abafar os questionamentos que seriam levantados sobre o que fez uma criança de dez anos se jogar direto para a morte, muito ali estavam abismados e ver toda essa indignação chegava a ser cômico de tão trágico, porque Tom ainda não sabia dizer se as pessoas realmente não faziam ideia da realidade suja desse sistema anti-trouxas ou se sabiam, mas fechavam os olhos para não perderem seus escravos.

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